Avaliar a Zona Franca de Manaus (ZFM) enquanto projeto de desenvolvimento sub-regional, ao que presumo, deve se constituir imposição de caráter histórico. Decorridos 55 anos de sua instituição, há de se convir que as circunstâncias socioeconômicas, políticas e de logística operacional, interna e externamente, alteraram-se significativamente. A economia, por dinâmica, concilia momentos favoráveis e maus, depara-se não raro com crises econômicas de gradação diferenciada, que, felizmente, tais quais as marés, avançam e refluem, em moto contínuo, sobre a praia. Desde os primórdios de sua criação o modelo ZFM apresenta resultados positivos, em relação ao Polo Industrial de Manaus (PIM) e negativos, ao se distanciar de fundamentos legais e falhar talvez na sua proposta mais importante: a irradiação do crescimento econômico ao interior do Amazonas e da Amazônia Ocidental.
Justifica-se. O DL 288/67, em seu Art. 1º estabelece que “a Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram, os centros consumidores de seus produtos”. Por desvio de finalidade, ao contrariar o disposto no Art. 1º do Decreto-Lei nº 356, de 15 de agosto de 1968, e Art. 504 do Decreto nº 6.759, de 05 de fevereiro de 2009, todavia, veio a concentrar 95% de sua produção e arrecadação tributária em Manaus.
As distorções em referência se estendem ainda, dentre outras, ao Art. 11, do DL 288, que, no tocante às atribuições da SUFRAMA, prevê a elaboração (até hoje pendente) do Plano Diretor Plurianual da Zona Franca, coordenando e promovendo sua execução, diretamente ou mediante convênio com órgãos ou entidades públicas, inclusive sociedades de economia mista, ou através de contrato com pessoas ou entidades privadas. Observa-se que, ao longo desses 55 anos, formou-se, ante as deformações e inconsistências do modelo, perigoso vácuo derivado de omissões da Suframa, Sudam e dos governos estaduais da Amazônia Ocidental no tangente, sobretudo, à definição de estratégias desenvolvimentistas. Portanto, o modelo permanece travado aguardando a adoção de políticas públicas capazes de reverter o quadro conjuntural até aqui adverso.
Dentre exemplos que podem fartamente ser citados, o de não haver sido capaz de incentivar, junto com a universidade, a formação de quadros especializados (engenheiros, técnicos operacionais, administradores e gerentes em todos os níveis, pesquisadores, analistas, especialistas em mercados e direito internacionais (fusões, aquisições, contratos, etc.). Mais grave ainda, a gestão do modelo fracassou, ao lado de esforços voltados à promoção de inovação tecnológica no território, negligenciou a na busca de consolidar talvez o único fator que efetivamente perenize apresente condições de perenizar a ZFM: a incorporação da bioeconomia à matriz econômica industrial e a implantação de um polo exportador, visando o equilíbrio de seu balanço de divisas.
O Brasil, embora em velocidade aquém das necessidades, vem promovendo ajustes em sua política econômica, promovendo reformas estruturais, modernizando instituições, consolidando marcos legais. Quebra de paradigmas assume protagonismo junto a países que investem pesado em CT & I, e, por isso, a humanidade tem sido levada a um saudável e intenso nível de convivência com processos de ruptura e transformações oriundos da Indústria 4.0, sem uso de armas.
Tendo em vista alinhar-se aos países líderes da economia contemporânea, o país, todavia, deve empreender ingentes esforços no sentido de maximizar os níveis de integração nacional, empreendendo mudanças estruturais nos campos da infraestrutura, ciência e tecnologia, saneamento básico, educação, saúde e segurança pública tendo em vista a promoção do crescimento urbano, industrial e agropecuário, em níveis do padrão tecnológico mundial, notadamente nos termos da Revolução Industrial 4.0.
O país poderia ter avançado muito mais. Contudo, negligencia gravemente um dos setores mais importantes da economia contemporânea: o tecnológico, particularmente, a) como resultado de políticas erráticas tangentes à Lei da Reserva de Mercado de Informática, que levou o país a distanciar-se da competição mundial; e b) por não estar se empenhando adequadamente na transição rumo à absorção das tecnologias disruptivas advindas da Revolução Industrial 4.0, cuja base teórica e programática fundamenta-se no livro A Quarta Revolução Industrial, de Carl Schwab, lançado no Fórum Mundial de Davos, em janeiro de 2016., abrangendo: Internet das coisas (Internet of Things – IoT), Big Data Analytics, Segurança e robustez dos sistemas de informações, nanotecnologias, neurotecnologias, robôs, inteligência artificial, biotecnologia, sistemas de armazenamento de energia, drones e impressoras 3D.
Semelhante raciocínio há de se coadunar aos princípios norteadores e aos propósitos da Zona Franca de Manaus. Ou a ZFM acompanha a revolução tecnológica em pleno curso conduzida pelos países líderes do crescimento mundial, ou novamente perde o trem da história, sobretudo por não mais ser possível manter-se na condição de simples modelo substituidor de importações. Pelo simples fato de que os tempos são outros. Por isso, a competitividade cresce em proporções da velocidade da luz. Há pelo menos 30 anos que se tem plena convicção de que a Zona Franca, embora exitosa em alguns aspectos, deve acordar para o mundo novo que gira ao nosso redor. Esta é a razão fundamental que torna indispensável e urgente incluir uma plataforma de exportações como conteúdo essencial à nova matriz econômica aqui proposta.
Defender nova agenda econômica para a ZFM, efetivamente, não implica repudiar o passado, desprezar o que está dando certo. Mas, medir micro e macroeconomicamente o que foi realizado ao longo desse meio século e meio, e, escoimados as imperfeições e os pontos de estrangulamento que impedem o projeto de avanços mais significativos, e projetar o futuro. Novos desafios estão postos. Demandam visão corajosa sobre paradigmas tecnológicos e de planejamento estratégico a sobrepor-se a padrões até então tidos como satisfatórios. Faz supor, finalmente, que alguns setores exigem mudanças de direcionamento de tal sorte a definir caminhos alternativos mais eficientes e adequados ao momento histórico, particularmente no tocante aos padrões tecnológicos que alavancam os sistemas produtivos e comerciais subjacentes à Revolução Industrial 4.0.
Entendo que a hipótese a considerar liga-se ao próprio desafio do desenvolvimento, lato sensu, conceito que abrange a economia e o tecido sociocultural como um todo, diverso do crescimento econômico, eminentemente setorial. Assim, a conjuntura pode estar bastante favorável a determinados segmentos empresariais e não provocar repercussões positivas no que tange à macroestrutura social e econômica do estado, da região ou do país. É o caso da Zona Franca de Manaus. O PIM cumpre o papel para qual foi criado do ponto de vista das empresas aqui instaladas. No tocante à economia amazonense e à Amazônia Ocidental, contudo, os resultados da política de incentivos não se fazem sentir na mesma proporção.
Indiferentes ao fulcro da questão, as representações políticas postam-se mais preocupadas com seus interesses particulares em termos de acordos partidários e alianças voltadas às próximas eleições, donde se constata maior atenção dispensada à concessão de subsídios assistenciais (bolsa família, bolsa floresta, dentre outras) e à prorrogação da ZFM.
Nesse ínterim, persiste o déficit de políticas públicas voltadas ao crescimento econômico. Mais ainda, o quadro conjuntural revela que Sudam e Suframa encontram-se deslocadas dos objetivos iniciais traçados em 1966 e 1967, quando foram instituídas, e a Amazônia destituída de estratégia de desenvolvimento social, econômico, cultural e tecnológico de curto, médio e longo prazo. Enquanto isso, a Zona Franca de Manaus sofre grave processo de “fadiga de materiais”, que, mantido o “estado da arte”, deverá se agravar ainda mais. Nesse meio tempo, China, Coreia do Sul, Hong Kong, Vietnã, Cingapura, Malásia e Índia consolidam suas posições como os “tigres asiáticos” do século XXI na linha de frente do crescimento mundial.
*Osíris M. Araujo Silva é economista, consultor empresarial, escritor. Membro do Inst. Geográfico e Hist. do Amazonas, do GEEA do INPA e do CORECON-AM.