Por Ribamar Bessa:
O historiador Marcelo Sant’Ana Lemos encontrou em Valença (RJ) um homem que só existia nos arquivos por ele consultados, um homem de papel que se fez carne e habitou entre nós, pulando dos documentos empoeirados do séc. XIX para as ruas movimentadas do séc. XXI. É possível entender o que aconteceu lendo seu livro “O índio virou pó de café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba“, dissertação defendida no mestrado em História da UERJ, cujos protagonistas são os índios Puri, Coroado e Coropó considerados oficialmente extintos.
Foi assim. Durante pesquisa nos arquivos, Marcelo acompanhou alunos do 5º ano do Colégio Pedro II, Unidade Tijuca, na visita escolar realizada em 13 de novembro de 2003 ao Hotel Fazenda Ponte Alta, em Barra do Piraí (RJ). Percorreu as instalações históricas: engenho, senzala e até a biblioteca com livros sobre o tema, mas nada sobre os índios da região. De repente, no antigo pátio de secagem do café, antes do almoço, olhou pela porta aberta da cozinha e viu um cozinheiro descascando batatas. Esfregou os olhos porque não acreditou no “fantasma” que via.
Não era a alma penada de Getúlio Vargas que passou seu último aniversário naquela fazenda. Era um índio que lá da cozinha sorria, era uma gravura viva do pintor alemão Rugendas, saída do livro “Viagem pitoresca através do Brasil”, realizada de 1822 a 1825, com mais de cem litografias, entre elas a de índios que, em pleno século XIX, tiveram seus territórios invadidos pelos barões de café, as terras espoliadas, a memória apagada. Foram varridos do mapa do Rio de Janeiro. A escola ensina que não sobrou nenhum deles para contar a história. Será?
Ressurreição
Para tirar qualquer dúvida, Marcelo perguntou ao cozinheiro se ele era índio. A resposta surpreendente veio em voz baixa, mas firme:
– Sou sim, mas ninguém sabe, quem lhe contou?
Era a primeira vez que um historiador encontrava ao vivo um personagem, cuja existência só estava documentada nos arquivos. Para checar se em Barra do Piraí vivia um descendente de índios de Valença, um índio fluminense, indagou:
– E aonde o senhor nasceu?
– Em Valença!
Bingo! Marcelo acabava de descobrir um índio descendente dos Coroado de Valença e fechava com chave de ouro sua pesquisa orientada pelo historiador Marco Morel. Ambos sempre suspeitaram que os indígenas da região deixaram descendentes, ao contrário do que afirmavam os moradores locais e os historiadores. Era uma questão de tempo encontrá-los. Bastava tão somente saber olhar pela fresta de uma cozinha.
Lá estava ele, descascando batata, lá estava José Manoel da Silva Filho, o Zezinho, que apresentou a tia ao historiador. Nas conversas de família, eles sabiam que eram índios, conversavam sobre isso, mas sempre da porta pra dentro. O Brasil não sabia, o Rio não sabia, seus vizinhos desconheciam, mas a família continuava cultivando essa memória dentro de casa. Isso Zezinho contou em outros encontros com Marcelo, um dos quais tive a sorte de acompanhar, quando participamos de evento organizado pela Fundação Educacional André Arcoverde, em Valença.
Foi aí, passando por Barra do Piraí, em 2005, que conheci Zezinho, nascido em 1944, filho de José Manoel da Silva e Carlinda da Silva, ambos naturais de Valença. Batizado na Igreja de Nossa Senhora da Gloria, viveu sua infância na Fazenda Vista Alegre, pertinho de Conservatória, onde morava com seus pais, parentes e agregados, conforme contou a Marcelo Lemos.
Casa de Caboclos
O historiador entrevistou a tia, dona Maria Silva, de 82 anos, que conviveu com os avós Florismina da Silva e José Silva e, por isso, conhece bem a história familiar, apesar de casada com um cidadão não-indígena da família Rozendo. Ela contou que o bisavó de Zezinho era índio, narrou como foi atraído do mato e iniciado na cachaça, depois de ter suas terras roubadas. Revelou também que outros parentes, mais velhos, que moravam em Santa Isabel do Rio Preto, distrito de Valença, podiam fornecer mais informações para o mapeamento dos atuais índios do Vale do Paraíba que estavam camuflados e agora ressurgem com toda força.
Os pais de Zezinho e seu tio Arlindo Silva estão enterrados em Barra do Piraí, no cemitério perto da Fábrica de Papel. Zezinho contou que quando moravam em Chacrinha, na periferia de Valença, era conhecido como “o caboclo”, seus parentes também eram chamados de “caboclos”. Mas na fazenda Ponte Alta, ficou conhecido como “José Fula”, devido à cor morena da pele. Morou um tempo no Rio de Janeiro, trabalhou com Burle Marx como jardineiro, aprendeu muito com ele e nos livros sobre botânica.
Zezinho descreveu alguns remédios e ervas usados para curar doentes, reconstituindo fiapos de conhecimentos ancestrais. Citou um ditado local antigo: “Mais vale a fé do que o pau da barca”, uma referência às barcas que atravessavam o rio Paraíba do Sul e à influência da religiosidade popular na cura das pessoas com chá de lascas de madeira medicinal. O leite de mamona – ensinou Zezinho – evita infecção no umbigo das crianças ou então a teia de aranha com fuligem de madeira queimada ou ainda a casa de marimbondo, esmigalhada e torrada, usada como curativo no umbigo.
Embora não fosse mais falante da língua indígena, Zezinho era “lembrante”. Contou que entre os adultos, na época da sua avó, ouvia diálogos com palavras estranhas entre os seus parentes mais velhos e que falavam de forma diferente, mas não assistia muito, pois não podia ficar presente sem permissão na conversa dos adultos. Eram prováveis marcas da língua indígena no português falado dentro de casa.
Marcelo Lemos é um historiador visceralmente comprometido com os Puri do Vale do Paraíba. Organizou um glossário da língua Puri, baseado em diferentes fontes que no passado recolheram dados com os falantes. Quando terminou sua dissertação, em 2004, deu de presente um exemplar para Zezinho, que mostrava, orgulhoso, para todos no Hotel Fazenda, contando que sua família estava retratada ali. Ao voltar em 2016 já com um exemplar do livro, foi informado sobre o falecimento recente de Zezinho, vítima de complicações da diabete, responsável pela amputação de uma perna. Ele não resistiu ao avanço da doença.
O caboclo José Fula, o índio Zezinho, o cozinheiro do hotel fazenda que representava a descendência dos Coroados e Puris do Vale do Rio Paraíba, retratados por Rugendas no início do séc. XIX, não poderá ver a exposição que o Museu de Arte do Rio (MAR) vai inaugurar em abril próximo sobre os índios no Rio de Janeiro. Mas ele e os “lembrantes” da língua Puri, que não viraram pó de café, estarão lá, redivivos, mostrando aos visitantes a história, a arte e o modo de vida dos Puri, dos Guarani, dos Pataxó da Cachoeira do Iriri, em Paraty e dos índios em contexto urbano. Ele, Zezinho, o índio de Valença que deixou, enfim, de ser um índio de papel.
P.S. Marcelo Sant´Ana Lemos. “O índio virou pó de café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba (1788-1836). Pós-Graduação em História. UERJ, 2004. Banca: Marco Morel (orientador), João Fragoso e José R. Bessa.