VOLTA PRO NAVIO, SEU PORRA!

Por Ribamar Bessa

Tirando o carimbó do Pinduca, o que é que o Amazonas tem que a Itália não tem? A resposta foi dada por um estudo comparativo entre o naufrágio do Costa Concordia em águas italianas do mar Tirreno, na última sexta-feira, 13 de janeiro, e o acidente de três embarcações que colidiram no Amazonas, num sábado, 18 de julho de 1953. A pesquisa encomendada pelo Data/Taquiprati explica porque o comandante Francesco Schettino abandonou o navio, sem prestar socorro aos passageiros, enquanto os capitães amazonenses resgataram cada uma das vítimas antes de salvar a própria pele.
Os pesquisadores analisaram minuciosamente a estrutura de cada embarcação, a rota percorrida, o perfil psicológico e profissional de seus comandantes, a formação técnica e a biografia de cada um deles, bem como os contatos externos que tiveram no momento da tragédia, procurando saber de quem teriam recebido orientação. Para isso, consultaram, no caso dos barcos amazonenses, os jornais da época e depoimentos de velhos que testemunharam o ocorrido e, no caso italiano, entre outros documentos, tiveram acesso à caixa preta do navio.
Caixa preta
Lançado ao mar em 2006, o Costa Concordia custou uma fortuna: 570 milhões de dólares. Podia transportar até 4.000 passageiros, para quem estavam disponíveis 1.500 camarotes, 5 restaurantes, 13 bares, 4 piscinas, quadras poliesportivas, sauna, banho turco, cinema, teatro, cassino, discoteca. Um luxo! No momento do naufrágio, navegava em água calma, numa rota conhecida que percorria, semanalmente, 52 vezes ao ano.
Seu comandante Francesco Schettino nasceu há 52 anos em Castellammare, perto de Nápoles. Cursou o Instituto Náutico de Piano di Sorrento, onde estudou matérias técnicas, mas também Ética – disciplina na qual obteve nota máxima depois de ter decorado todo o Código de Ética da Marinha Mercante. Começou a viajar em cruzeiros como oficial responsável – oh ironia! – pela segurança. Foi promovido a capitão em 2006. É casado, tem uma filha de 15 anos e, depois da tragédia, buscou o colo materno: a primeira pessoa que chamou por telefone foi sua mãe, dona Rosa, de 80 anos.
Bom filho e bom amigo, esse Schettino, que mudou a rota habitual do navio, só porque queria se exibir para um velho amigo seu, o ex-capitão Mario Palombo, que vive na ilha de Giglio. A manobra acabou fazendo com que o casco do navio batesse nas rochas e afundasse. “Cometi um erro na aproximação, ordenei a manobra tarde demais e acabei em parte muito rasa” – confessou Schettino. Um dos funcionários do navio confirmou: “A impressão é que ele estava dirigindo um ônibus como se fosse uma Ferrari”.
Embora o navio estivesse a poucas braçadas da costa, foi um “salve-se quem puder” e “o resto que se lixe”. O capitão Schettino, que devia ser o último a sair, vestiu o colete e, todo encagaçado, abandonou correndinho o navio, apesar de não correr qualquer risco de morte. Junto com ele se picaram o grego Dimitri Christidis – segundo comandante e a terceira no comando, Silvia Coronica.
Todo o comando deu vexame em cenas deprimentes e surrealistas. Parecia até o navio de luxo que serviu de palco para o funeral de uma cantora lírica no filme E la nave va dirigido por Fellini. Um dos personagens é um rinoceronte asqueroso, que deixava enorme fedentina por onde passava. Não seria surpreendente se ele pulasse das telas para o convés do Costa Concordia. Foi esse olor fétido que o mundo assistiu com o naufrágio responsável por 11 mortes, 21 desaparecimentos e muita covardia. Não foi isso que ocorreu no Amazonas.
Catraias manauaras
As embarcações que colidiram em Manaus, em 1953, faziam sempre a mesma rota, diariamente, dezenas de vezes. Eram três catraias que atravessavam um braço do rio Negro – o igarapé de São Raimundo – transportando para o outro lado as pessoas que iam trabalhar, estudar, passear, namorar no bairro de Aparecida ou no centro da cidade.  Naquela época, a catraia cobrava dois tostões por travessia e era o único ponto de ligação entre os dois mundos. Cada uma delas havia custado o equivalente a 600 dólares e tinha capacidade para carregar 15 passageiros.
O comandante da Sertaneja era o João Baú, cearense de idade indefinida, aleijado, sem pernas, que se deslocava com o corpo apoiado dentro de um caixote. Ele se revezava no remo com seu filho, o Facadinha.Quem comandava a Novo Amazonas era o Boca de Jóia, um cabocão parrudo, desdentado e de lábios caídos, de 50 anos, nascido em Parintins. A Rumo Certo era – digamos assim – a terceira nave, capitaneada pelo Chico Cururu, um antigo vendedor de vísceras e miúdos de boi. Dos três, ele era o único que havia aprendido a ler no Grupo Escolar Olavo Bilac, onde cursou até o 2º ano A do curso primário. Nenhum deles estudou ética.
Como ocorreu o acidente? Naquele sábado, o time dos bucheiros – o Sul América Sport Club – levando numerosa torcida, atravessou o igarapé para enfrentar, no campo do Hore, o Independência do bairro de Aparecida, na decisão disputadíssima de um torneio de vida e morte. Perdeu de 5 x 1, dois gols do Quinha, dois do Melado e um, de falta, do Paulo Lira, o maior ponta esquerda do mundo. O jogo terminou já no comecinho da noite debaixo de muita porrada. Jogadores e torcida correram, em fuga desordenada, para o porto das catraias.
Nem mesmo a Pinta, a Nina e a Santa Maria tiveram papel histórico tão relevante como a Rumo Certo, Novo Amazonas e Sertaneja, que acolheram homens, mulheres, crianças e idosos perseguidos por uma pequena multidão raivosa. As catraias ficaram apinhadas, cada uma com o dobro do limite máximo de passageiros. A travessia era mais demorada do que de costume por ser noite e porque o rio estava transbordando. Em 1953, o Amazonas enfrentava a maior cheia de sua história.
A noite era um breu. Os remos mal conseguiam se mover. Foi aí que as três canoas se chocaram, não aguentaram tanto peso e afundaram com cerca de 100 passageiros – alguns dos quais não sabiam nadar – nas águas do igarapé que recebia esgotos domésticos e efluentes industriais e tinha alto índice de coliformes fecais e metais pesados.
Fala Brasília
Sejamos honestos: a primeira reação dos comandantes – Chico Cururu, João Baú e Boca de Jóia – foi abandonar o barco, porque eles eram tão cagões quanto Francesco Schettino, eu e você, leitor (a).  Encagaçar é humano, mas persistir no encagaçamento é que é desumano. Eles se encheram de coragem quando ouviram um grito solidário que cortou a noite:
– Salvem primeiro as crianças, as mulheres, os velhos, e quem não sabe nadar!
Alguns dizem que o grito foi de Dazinha, a Adalgiza, enrolada na bandeira do Sul America que ela mesma havia bordado. Outros juram que o grito foi da Neca, a Ludinéia. O certo é que, independente da autoria, o grito foi escutado.
Assim foi feito, e ninguém morreu afogado, embora por haver mergulhado no coco e na merda, muita gente teve diarreia, colite, gastrite e outras doenças infecciosas. Os três catraieiros – Chico Cururu, Boca de Joia e João Bau – esse último nadando “cachorrinho” – parecem ter ouvido também o apelo do Pinduca num carimbó que ainda nem existia. O certo é que foram buscar o amor no lado de lá.
No caso do Costa Concordia, no lado de cá, um grito também cortou a noite: Gregorio De Falco, da Capitania dos Portos de Livorno, mandava o capitão Schettino voltar ao navio, numa ordem que no dia seguinte estava impressa em camisetas por toda a Itália envergonhada:
–  Vada a bordo, cazzo!
O comandante italiano, sem saber o que responder, telefonou para Brasília pedindo instruções ao EDEMA – Escritório das Desculpas Esfarrapadas Mais Absurdas. A caixa preta gravou um diálogo entre ele e vozes que ora parecem ser do Sarney, ora do Renan Calheiros, ora do Jader Barbalho ou de algum ministro defenestrado: – Negue sempre. Diga que você escorregou e caiu em um bote salva-vidas. Diga que está tudo escuro e você não vê nada.
Assim foi feito. O comandante, que devia ser o último a abandonar o navio, foi o primeiro. Como os ratos. Usou essa desculpa esfarrapada. Se ela sempre deu certo em Brasília, por que não daria com ele?
(*) Ribamar Bessa é jornalista, escritor e professor.