Viva Fernando Lyra.

Por José Paulo Cavalcanti Filho:

O poeta pernambucano Marcelo Mário Melo recomenda lembrar nossos mortos “não pelas chagas de seus martírios, mas por seus jeitos de rir”. Em vez de lamentar o que poderia ter sido, sobretudo reviver lembranças boas. Sigo a trilha, quando penso no grande personagem de nossa história que foi Fernando Lyra.

E aproveito para reviver dois momentos de quando foi Ministro da Justiça. Por ali ficar marcado um traço bem dele, o de sua inteligência política. Esperteza, talvez fosse até mais próprio. A mesma esperteza que é “a coragem dos pobres”, na definição de mestre Ariano Suassuna.

Mas prefiro inteligência mesmo – que essa outra palavra nos dias que correm, por culpa e risco de nossas elites políticas, converteu-se em quase um insulto.

Março de 1985. Véspera da posse que seria de Tancredo e acabou de Sarney. Brasília era Cafarnaum rediviva – gente chegando de toda parte, carros oficiais com autoridades se exibindo, hotéis e restaurantes lotados, a grande festa da democracia depois de tantos anos negros.

O caldeirão fervia nos bastidores, com a doença do Presidente, ainda conhecida por bem poucos. Noite alta, recebo recado de Lyra para ir urgentemente ao gabinete de (Francisco) Dorneles – sobrinho de Tancredo e por ele escolhido Ministro da Fazenda.

Havia lá gente demais. Quase todos os novos Ministros. E ninguém se entendia. Opinião recorrente, na reunião, era a de que deveria tomar posse Ulysses Guimarães – Presidente da Câmara dos Deputados e terceiro na linha de sucessão. Todos (muito) angustiados. Fernando não. Estava em paz. O tumulto parecia ser seu ambiente favorito. Se sentia, nele, à vontade. E, sempre que falava, era para pedir consenso.

Assim seguiu aquele quase desastre até que o (então) futuro Ministro da Guerra, Leonidas Pires Gonçalves, apareceu com uma Constituição bem pequena, “de bolso” literalmente, e perguntou: “O que é que diz esse livrinho?”.

Fernando pediu minha opinião. Mostrei os artigos do tal “livrinho”, determinando que Sarney prestasse compromisso como Vice-Presidente e, no impedimento do Presidente eleito (Tancredo), assumisse (interinamente) a presidência.

Algumas vozes continuavam sugerindo Ulysses. Disse-lhe também que seu primeiro gesto, como Ministro da Justiça, não poderia ser rasgar a Constituição. Pouco a pouco a sala serenou. E se chegou ao consenso preconizado por Lyra. Assumiu Sarney. O mais é história.

Passa o tempo. O tempo sempre passa, como os ventos de agosto. Fugit irreparabile tempus, ensina Virgílio. Fevereiro de 1986. Estávamos nos preparativos para a transmissão do cargo ao novo Ministro, Paulo Brossard.

“Rui Barbosa em compotas”, sussurrou alguém, evocando o apelido maldoso que lhe foi dado por Brizola.

Fernando queria abrir a cerimônia com o Hino Nacional cantado (em disco) por Fafá de Belém.

Parênteses para dizer que isso nos dera trabalho, e grande. Fafá pretendia gravar o hino. O mesmo que cantou, sem nenhum acompanhamento, depois que Tancredo se perdeu em céus imprecisos e estrelados. Os militares eram contra. Segundo eles, a Lei não permitia.

Fernando me pediu parecer. Dei, dizendo que podia; só não, segundo a Lei, em “sessões oficiais e cerimônias públicas”. Enquanto a gravação era para se ouvir em casa ou nas ruas. Deu tudo certo.

Voltando aos momentos que antecederam a transmissão de cargo, Fernando insistia no hino com Fafá. Queria porque queria. E pronto. Lembro do que lhe disse: “Isso aqui é uma cerimônia pública, Lyra. E seu último ato, como Ministro, não pode ser descumprir a Lei”.

Quase a reprodução do diálogo de um ano antes, trocando só as datas. Lyra perguntou: “Na cerimônia não pode?”. Respondi o que ele já sabia, “Não”. E ele: “Então deixe comigo”. E riu. Ninguém entendeu nada. E a angústia crescendo, em todos nós, que Lyra era capaz de tudo.

Salão cheio de autoridades. O hino de Fafá, já ninguém tinha dúvidas, iria tocar mesmo. “E a Lei?”, nos perguntávamos. “A Lei, ora a Lei”, alguém falou baixinho.

Os lugares da mesa iam sendo ocupados pelas autoridades. A voz do locutor era uma ameaça, e foi ela que se ouviu naquela hora: “Composta a mesa, e antes de ter início a cerimônia oficial, ouviremos o hino nacional cantado por Fafá de Belém”. Antes. A esperteza (inteligência) era essa.

Todos de pé. Findo o hino, volta o locutor: “Começa, agora, a cerimônia oficial de transmissão do cargo”. Não foi durante, graças ao Deus misericordioso. Lyra era mesmo um demônio – no bom sentido, claro. E cumpriu-se a Lei. Suspiramos aliviados.

Assim era Lyra. Em verdade, muito mais. Um homem não apenas reto, sem dúvida. Também, exemplo de que se pode exercer a vida pública sem abrir mão dos valores. Dos princípios. Capaz de por os interesses do país além dos seus próprios. Tão diferente de hoje. Em resumo, um grande brasileiro.

Mas não apenas isso. Também, e sobretudo, uma grande figura. Ligado à família. Aos amigos. Amplo, em sua dimensão humana. Como se fosse pouco, era alguém que sabia rir.

Choro o amigo que se foi lembrando palavras de Fernando Pessoa, no Desassossego: “E para ti, ó Morte, vá a nossa alma e a nossa crença, a nossa esperança e a nossa saudação! Virgem-Mãe do Mundo absurdo, forma do Caos incompreendido, alastra e estende o teu reino sobre todas as coisas, entre o erro e a ilusão da vida!”

Agora veio a indesejada das gentes. E foi-se o homem. Ficam saudades. E seu exemplo.

José Paulo Cavalcanti Filho, 64, advogado no Recife
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