A vitória de Ollanta Humala nas eleições presidenciais no Peru, ocorrida nesta semana, confirma uma tendência de transformações históricas na América do Sul e consolida na região uma verdadeira mudança de época.
O momento no continente é de valorização das forças políticas antenadas com os movimentos populares, com perfil nacional democrático, propostas de reorganização do papel do Estado e forte viés de retomada do crescimento econômico com distribuição de renda.
Essas bandeiras ficaram claras no discurso de vitória de Humala, que disse que governará para seu povo, indígena, pobre, esquecido e marginalizado.
Esse mesmo povo o elegeu nadando contra a intensa campanha midiática em favor da candidata apoiada pelo poder econômico e pelas elites—Keiko Fujimori.
Keiko, que ganhou a alcunha de “preferida do mercado”, é filha do ex-presidente e ditador Alberto Fujimori, que se encontra na cadeia cumprindo pena de prisão de 25 anos por corrupção e desrespeito aos direitos humanos (assassinatos de adversários) durante o regime de exceção que comandou o Peru ao longo da década de 1990.
A campanha presidencial peruana, ao contrário do que fez crer a grande mídia brasileira, foi marcada pelo alto grau de consciência e politização.
Aqui, o noticiário não informou que a escolha do povo pobre e marginalizado do Peru foi por um modelo de crescimento que combata a pobreza e distribua renda, expresso nas propostas de Humala. Da mesma forma, o debate político ficou em segundo plano nas páginas de nossos jornais.
Mas o que se discutiu na campanha foi o papel do Estado, a distribuição dos benefícios da mineração e do petróleo, os serviços públicos de Educação e Saúde e a Previdência pública.
Em campos opostos, estavam Keiko defendendo a visão neoliberal e Humala representando uma frente democrática (concertación, em espanhol) para inclusão social.
A trajetória do Peru tem muito de semelhante com outros países da América do Sul, com a contraposição entre um modelo elitista e um popular. A tendência na região tem sido a de escolher a via democrática e popular.
No caso dos peruanos, pesava também a sombra de Fujimori, cuja memória de violação dos direitos humanos e corrupção ainda está viva —a candidatura Keiko prova a falta total de compromisso com a democracia de nossas elites latino-americanas.
As mesmas forças, guardadas as nuances de cada nação, estão presentes e em disputa na Venezuela, que caminha para reeleger Hugo Chávez; na Argentina, com provável vitória de Cristina Kirchner; e na Colômbia de Juan Manuel Santos, que, apesar de eleito com apoio de Álvaro Uribe, surpreendeu assumindo no plano interno e externo medidas como a devolução das terras expropriadas aos camponeses, entendimento com a Venezuela e a volta do país à Unasul (União de Nações Sul-Americanas).
Se considerarmos também Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa(Equador) e José Mujica (Uruguai), o cenário é de expansão e ampliação das forças que defendem o modelo democrático popular. Inclusive no Brasil, primeiro com Lula e agora com a presidenta, Dilma Rousseff.
Essa tendência, que abarca ainda as mudanças em Cuba e a aliança que se forma no México para as eleições de 2012, aponta para a consolidação da aliança política que fez possível a Unasul, tornando viável a integração não apenas da América do Sul, mas em toda América Latina.
O Brasil tem sido identificado como um exemplo de êxito na combinação de democracia e desenvolvimento socioeconômico. Somos também participantes dessa tendência e vemos nela um caráter estratégico para nosso progresso. Por isso, temos um importante papel a cumprir na consolidação da aliança política de integração regional.
Que os bons ventos da eleição de Humala nos levem ainda mais adiante nessa marcha de avanços que pode pôr fim, em algumas décadas, às profundas barreiras que as elites construíram durante séculos de dominação.
José Dirceu, 65, é advogado,ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT