Por Eliane Aquino:
Sarney foi ‘emboscado’ na porta do banheiro; era a entrevista a todo custo
Arquivo/Senado
O ex-presidente Sarney, forçado pelo ‘susto’ a falar com repórter
Desde que assumira o governo brasileiro depois da morte de Tancredo Neves, aquela era a segunda vez que José Sarney visitava a Amazônia. A primeira, um ano antes, ele fora a Tabatinga, fronteira do Amazonas com a Colômbia. Agora, março de 1986, ele estava indo a Manaus para um encontro de presidentes de países da América Latina.
A imprensa local estava em polvorosa. Após a ditadura militar, era a primeira vez que um presidente civil iria desembarcar na cidade.
A pauta era das mais diversas, desde as relações políticas com os países vizinhos, a presença militar nas fronteiras em função da máfia do narcotráfico em Medellin e Cali, na Colômbia, havia o prumo da democracia política no Brasil e a alta da inflação impedindo o crescimento justo da economia nacional.
Eu fui escalada pelo jornal A Crítica, onde trabalhava à época, para fazer a cobertura. Devidamente credenciada dois dias antes, recebi o dever de casa dos meus chefes, jornalistas Francisca do Vale e Mário Monteiro. Era sobre a não liberação das cotas de importação pelo governo brasileiro através da Suframa. Seria a nossa manchete, visto que essa era uma pauta nossa, nascida na redação. Topei o desafio.
Havia fumaça com cheiro de corrupção nessa história.
Na programação estava prevista uma coletiva à imprensa, antes do almoço, no Hotel Tropical, local que sediaria a partir das 15 horas o encontro dos chefes de Estado. Antes, houve visitas a algumas indústrias. Mas na hora da entrevista, o cerimonial e a Comunicação da presidência da República anunciaram que apenas dez, dos mais de 30 jornalistas (havia imprensa de vários países da América Latina) fariam as perguntas. A escolha seria por sorteio.
Não fui sorteada.
E aí a porca torceu o rabo. Eu não sairia dali apenas com o factual. Não mesmo.
Era uma segurança absurda. Ninguém chegava perto do presidente e nem de seus ministros. Nem mesmo, ou talvez sobretudo, a imprensa.
Colocaram os jornalistas para comerem numa sala reservada. Eu não quis. Peguei meu bloco de papel e minha caneta, e me pus do lado de fora, na distância mais perto possível da sala onde a comitiva, recepcionada pelo governador Gilberto Mestrinho, do mesmo PMDB de Sarney, almoçava.
Sentada em uma poltrona onde podia acompanhar os gestos do presidente e do governador, me meti a especular comigo mesmo. Não estava acontecendo ali nenhuma conversa amistosa. Mestrinho gesticulava muito, e por cinco vezes (contei cada uma e coloquei em meu texto), o presidente tentou levantar-se e o governador o obrigou a sentar-se, segurando-o pelo braço.
Chamei o fotógrafo que me acompanhava, o meu companheiro de muitas pautas, João Pinduca Rodrigues. Mas um segurança percebeu nossos movimentos e nos afastou dali. Nem bem o segurança deu as costas, silenciosamente voltei ao meu posto e orientei Pinduca e me seguir com a lente. Eu estava disposta a manter minha tocaia e a emboscar o presidente Sarney, a todo custo.
Aí, percebi que na sala onde acontecia o almoço não havia banheiros. Os banheiros ficavam mais à direita, e arrisquei. Em alguma hora, o presidente haveria de ir ao banheiro. Antes que os seguranças interditassem o local, entrei no banheiro feminino. E fiquei ali. A cada movimento na porta ao lado, no banheiro masculino, eu botava a cabeça de fora.
Uns quinze minutos depois, vi que homens da segurança se aproximavam. Dois entraram e um ficou na porta. E aí escutei a voz do presidente:
– É por aqui?
E o outro segurança que o acompanhava, disse que sim:
– Sim presidente, à sua direita.
Aí eu saltei na frente do presidente:
– Por favor, presidente. Sou jornalista, preciso apenas lhe fazer duas perguntas.
Um segurança me pegou pelo braço e o outro ficou entre eu e Sarney, como se eu estivesse prestes a atirar contra o presidente.
“Calma”, disse Sarney, sorrindo. Deixem, eu falo com ela.
E olhando para mim, perguntou:
– Posso ir ao banheiro primeiro?
E eu, já livre da grosseria do segurança, respondi aliviada:
– Tem a minha permissão, presidente.
Minutos depois, estávamos eu e o presidente, com direito a boas fotos de Pinduca, numa entrevista que durou quase 15 minutos. E ali, ele me deu, também, a senha para a série de reportagens que fiz sobre o crime do colarinho verde, um desvio milionário de recursos públicos da Suframa.
A manchete de Capa, na visita de Sarney a Manaus, naquele dia, foi a confirmação da mudança do Comando Militar da Amazônia, em função da morte de militares do exército brasileiro pelo narcotráfico da Colômbia. Coisa que, na coletiva, o presidente se esquivou de falar, mas me revelou com exclusividade. Ele ainda me confidenciou que o mal estar com Mestrinho era exatamente essa mudança, que não agradara ao governador, acostumado a mandar e desmandar na política do Amazonas. Mas, isso, é tema para outra história.
Comentário meu: A Eliane Aquino, ótima jornalista alagoana, que morou em Manaus há trinta anos atrás e trabalhava em A CRÍTICA foi a responsável por uma série de matérias de A CRITICA sobre o crime do colarinho verde, um crime cambial que arrastou a Zona Franca de Manaus para as páginas policiais. Trinta anos depois revela como conseguiu a matéria. Memória.