Em um cenário de incertezas, quanto aos desdobramentos das múltiplas crises associadas à covid-19, há previsões muito preocupantes, como a que fez António Guterres, secretário-geral da ONU, na reunião do G-20, realizada no fim de semana passado: “(…) o mundo em desenvolvimento está à beira da ruína financeira e da crescente pobreza, fome e sofrimento indizível.”
A despeito dessa dramática perspectiva, optamos, no Brasil, por uma conduta que ignora planejamento para enfrentar as crises e sequer dá atenção à elaboração do orçamento federal do próximo exercício e à aprovação da PEC Emergencial.
Em lugar disso, o debate público está concentrado na eleição das mesas diretoras do Congresso e em um projeto de reforma tributária (PEC 45) hostil a muitas famílias, setores produtivos e entes federativos.
As críticas frequentes que tenho feito à PEC 45 não autorizam concluir que desconheço a existência de problemas no sistema tributário brasileiro, tanto quanto também existem nos sistemas tributários de todos os países. O que varia é a natureza e dimensão dos problemas.
Não entendo como uma proposta de reforma tributária possa ser produzida em ambiente privado, submetendo-se ao crivo de interesses privados, e utilizada como instrumento para consecução de objetivos eleitorais. Receio que essa conduta seja pouco republicana.
A proposta é desabastecida de estudos, ressalvados exercícios econométricos, que são contestados por experientes especialistas e que, sobretudo, ofendem o senso comum, quando pretendem fazer conjecturas sobre vinculação, em uma década, entre a aprovação de uma proposta lacunosa e o crescimento do PIB.
Paul Romer, Nobel de Economia de 2018, adverte quanto ao mau uso da matemática na economia, envolvendo suposições irrealistas e interpretações tensas. Esse recurso seria tão somente uma cortina de fumaça sofisticada, para disfarçar intenções e promover agendas ocultas.
Em artigos anteriores, procurei demonstrar que a PEC 45 é uma fonte inesgotável de problemas.
Neste artigo, cuido das repercussões federativas da proposta, em um contexto em que se vislumbram grandes dificuldades financeiras para os Estados e Municípios, no próximo ano.
A pretensão de adotar o princípio do destino, a despeito de estimular evasão fiscal (“carrossel”, segundo a literatura especializada) e promover a acumulação de créditos nas operações interestaduais, implica um jogo de ganhos e perdas entre os entes federativos.
O financiamento dessas perdas, em um inacreditável prazo de 50 anos, se daria, inevitavelmente, por aumento da carga tributária, já sabidamente elevada.
Os Estados conhecem os embates, que exigiram uma laboriosa negociação no STF, para efetivar, entre 2021 e 2037, o ressarcimento das perdas decorrentes da Lei Kandir (R$ 65,6 bilhões). O mais grave é que essa compensação se somaria àquela, agravando a dificuldade.
O autoritário governo de Narendra Modi, na Índia, implementou, a duras custas, uma reforma menos ambiciosa que a PEC 45, com promessa de compensação das perdas dos Estados. A crise fiscal associada à pandemia, entretanto, inviabilizou a compensação, impactando severamente as contas dos Estados, justamente os responsáveis pelos serviços de saúde e pelas transferências de renda.
Quanto aos Municípios, é preciso ter em conta suas enormes responsabilidades no atendimento da população urbana, que alcança a expressiva proporção de 86% da total, sabendo-se que a crise sanitária não está contida e que há uma grande quantidade de tratamentos médicos represados por força da pandemia. Além disso, a adoção de medidas restritivas ao funcionamento de serviços, em razão da crise, pode repercutir, negativamente, na arrecadação do ISS, que, em 2019, representou 48% das receitas tributárias das Capitais.
A despeito disso, a PEC 45 pretende sequestrar o ISS, incorporando-o a um imposto com claro viés centralizador, logo agora que o STF decide que a tributação de softwares se inclui na base imponível daquele tributo.