Por Ribamar Bessa:
Oito de agosto de 1980. Meio dia. Cerca de 20 peões, a mando de um fazendeiro, armados com motosserras, derrubavam árvores no Norte do Xingu. Já haviam sido advertidos que ali era área indígena. Reincidiram. Onze deles foram, então, mortos a bordunadas, numa ação unificada de noventa índios de seis nações, que teve repercussão internacional. Dias depois, Paulo Suess e eu entrevistamos para o Porantim vários líderes indígenas que negociavam em Brasília a paz com o general Nobre da Veiga, presidente da FUNAI. Entre eles, Raoni, que deu parte da entrevista num quartinho na Casa do Ceará, onde estava hospedado. Uma aula de sabedoria, de diplomacia, de solidariedade e de humor que merece ser reproduzida aqui no momento em que Raoni acaba de defender o Xingu no sambódromo do Rio. Em alguns trechos, mantivemos marcas da oralidade e do português xinguano.
P. Como é que onze peões foram mortos de repente? Quando começou esse conflito?
R. Quando fazendeiro começou a derrubar o mato, faz tempo. Fazendeiro derrubou dois km. de mato aqui (indica com o dedo no mapa perto do posto de Jarina). Então o meu povo foi caçar. Ai, o Bedjai, meu sobrinho, foi lá e escutou o barulho da moto-serra. Aí ele perguntou para o Aníbal (o balseiro da Br-080). O Aníbal disse: eu escutei barulho de moto-serra. Então o Bedjai contou pra mim, né: “Olha, tem gente derrubando mato lá no Piraraju”. Então eu fui com o branco, o Aníbal, mais seu companheiro. Nós descemos aqui (indica no mapa). Aí encontramos o pessoal derrubando mato. Chegamos lá, os caras com medo de mim, tudo com medo de mim. Falei pra eles: “Não, não tem medo não. Pode voltar aqui que eu quero falar com você”. Então, ele voltou. O Aníbal conversou com ele, depois eu conversei com ele assim: “Você pode procurar outro lugar, pode encontrar mato, terra, pode fazer roça, fazer casa, plantar capim, criar boi. Mas fora daqui. Aqui não! Aqui você não pode voltar mais, você não pode fazer isso na beira do Xingu”. Então o cara falou pra mim: “Você é o dono das terras, né, mas foi patrão nosso que mandou a gente trabalhar aqui”. Então eu disse: “Essa terra é nossa mesmo. Aí eles saíram, arrumaram as coisas e foram embora. Nós voltamos pra aldeia e falamos pra Funai, pro diretor do Parque, o Cico (Chico, Francisco de Assis Silva, administrador do PNX).
P. Quer dizer que a Funai já sabia de tudo há muito tempo? Então, porque não fez nada para impedir a guerra?
R. É. Um dia o diretor do Parque foi lá, o Cico. Nós descemos junto com ele. Procuramos, procuramos e não encontramos ninguém no acampamento que estava desmatando. Então, o diretor do Parque falou pra mim: “Eu já vou embora, mas aqui a terra é de vocês”. Ele falou assim e foi embora.
P. Ele não resolveu nada?
R. Não.
P. O que você fez?
R. Dez dias depois subi pra outro lugar, pro Diauarum. Eu fiquei esperando pra mim visitar o presidente da Funai e contar tudo pra ele. Então eu mandei o rádio duas vezes pro presidente da Funai mandar avião pra mim ir falar com ele. Esperei três semanas, o avião não foi lá. Então tava aqui no Diauarum um primo meu, o Moikora. Ai ele disse que os caras tinham voltado pra derrubar o mato. Aí ele foi e contou pro pessoal lá. Então o Bedjai – ele fala rádio, né? – contou pra mim: “Meu tio, os caras já voltou de novo, não foi embora não”. Então ele perguntou pra mim: “Meu tio, o que a gente pode fazer?” Aí eu falei: “Você que sabe”. Ai ele falou: “Não, você que toma conta de nós, você que sabe”. Aí eu pensei, né: bom, eu vou falar uma coisa pra você. Você vai junto com outras pessoas também – Kaiabi, Suiá, Trumai, Juruna – pra ajudar vocês a botar pra fora os fazendeiros. Eu pensei que eles não iam matar. Eu gostaria de ter ido junto com o meu pessoal, mas eu estava no Diauarum esperando avião.Então o pessoal meu foi embora. O Cico então disse: você não vai. Peça avião e vá para Brasília. Ai eu fiquei com o Cico e fui lá pra cima, pra minha aldeia, esperar o avião. Cheguei lá às 8 horas da noite. Lá minha mulher falou pra mim: “Nosso filho foi junto com o pessoal”. Então, 9 horas da noite, eu fui descer ainda atrás do meu criança. E desci e encontrei o pessoal que estava voltando. Já tinham brigado, Foi assim. Foi assim”.
P. – Depois o pessoal afundou a balsa…
R. É. Afundou. Afundamos a balsa prá não deixar mais gente passar nas estradas.
P. Então, vieram pra Brasília, reuniram com o presidente da Funai – o general Nobre da Veiga e ele prometeu desviar o traçado da Br-080?
R. Olha, a Funai falou pra mim que vai mudar a Br-080. Aí ninguém passa mais lá. Antes o mato não foi demarcado muito bem. Tá errado. Queremos que demarque direito, direitinho. Aí seria bom pra nós, índios do Xingu, como antigamente nosso avô que morava no mato.
P. Você acreditou nessa promessa da Funai?
R. Olha, eu acredito um pouco e eu não acredito muito não. Eu acredito só um pouquinho. Eu vou ver se ele vai fazer bem pra nós. Só acredito mesmo quando fizer.
P. E por onde vai passar a estrada, segundo a promessa da Funai?
R. (indicando no mapa) Está aqui a Br-080. A cachoeira primeira é aqui (aponta a Von Martius). Nós tamos pedindo que demarque depois da segunda cachoeira, aqui (aponta com o dedo) senão vai dar problema.
P. Mas os fazendeiros dizem que a terra é deles…
R. (irônico) Olha, eu aprendi o português, a língua de vocês e sei nossa língua, eu sei o que é bom e o que é triste, o que é verdade e o que é mentira. Meu pessoal sabe que os brancos tão acabando nós, nosso mato, nossa terra, triste mesmo. Fazendeiro quer briga, nós não quer briga. O presidente da Funai disse: “Olha, você tá acostumado com o branco, você já mudou. Agora temos de acabar com essa briga”. Então eu falei pro presidente da Funai: “Você acredita em nós agora. Muito tempo que você não acredita. Eu sei, a vida de vocês é diferente, a nossa vida é diferente dos brancos. Eu sei isso. Você pensa que índio não pensa nenhuma coisa? Índio pensa coisa boa, coisa ruim, coisa triste. Então eu falei com o presidente da Funai, então o branco muito tempo tava matando índio, matando muito índio mesmo, como minha avó. Mataram o avô de meu pai. Se a Funai toma conta de nosso índio, precisa entender bem nossa tribo, onde ela mora, o que ela quer. Quando fazendeiro entrar em nossa terra, Funai deve dizer: por favor, procura outro lugar, volta prá lá. Isto aqui é terra dos índios. Você procura outro lugar, Eu gostaria que Funai vai falar assim com os fazendeiros”.
P. E você acha que o presidente da Funai entende vocês?
R. Capaz que sim. Eu não sei. Eu entendo bem ele. Não sei se ele entende bem de mim. Eu não sei. Eu vou ver. Ele fala bom, depois ele fala coisa ruim,
P. O que ele falou de ruim nessa última reunião?
R. Ele falou que o meu primo, o Aruiavi, Trumai, que ele não devia ter ido contra os peões pra defender nossa terra. Ele disse: “A Polícia Federal tá procurando quem levou pessoas lá pra matar os peões. Aí eu não gostei do que ele falou. Aí eu falei pra ele: “Bom, presidente da Funai, você quer que a gente seja preso aqui, você chama a polícia e prende todos nós aqui. Eu tou aqui. Eu sou homem. Você também é homem. Falei assim, né? Ai ele disse: “Você não pode gritar assim”. Eu disse: “Você que falou isso. Você pensa que eu é menino. Eu sou homem e vim conversar com você. sério, sobre nosso problema.
P. Você diz que os brancos mataram seus avós. Mas que brancos?
R. Foi os portugueses, né. Português matou muito índio.
P. Mas e agora?
R. Agora é fazendeiro, seringueiro, castenheiro, garimpeiro que matam os índios. Índio Kaingang morreu. Terena morreu. Guajajara morreu agora na mão dos fazendeiros. Os fazendeiros estão acabando com todo índio. Agora estou muito preocupado com o meu povo, com todo mundo, não é só o meu pessoal Txukarramae, tou preocupado com todo mundo, todo índio.
P. Você nasceu onde?
R. Eu nasceu em Kapoto. Por ai tem Kapoto (procura no mapa). Kapoto é aqui (indica perto do Posto Jarina).
P. Mas esta terra está fora da área do Parque?
R. Pois é. Ficou fora. Foi aí que eu nasceu. Meu pai e minha mãe moravam aqui, no rio Liberdade. Sempre meu pai morou aqui, no rio Liberdade. Depois, meu pai morreu no rio Liberdade. Minha mãe morreu no rio Liberdade. Minha filha nasceu no rio Liberdade.
P. E por que vocês saíram do rio Liberdade?
R. Ah, porque chegou uma fazenda aqui; ai eu saí pra morar aqui (mostra no mapa), depois Funai pediu que a gente saísse de lá e fosse pra onde a gente está.
P. Os jornais disseram que você quer a estrada desviada para passar em cima da primeira cachoeira. Agora você diz que quer em cima da segunda, pegando o Liberdade. Como é isso?
R. Eu quero. Aqui é o rio Liberdade, onde eu nasci. Então a estrada deve mudar para cá (indica no mapa) por cima do rio Liberdade. Aí é muito bom pra nós. LIBERDADE VAI FICAR COMIGO AQUI. Quando passar aqui (aponta o rio Liberdade), aí não tem mais problema, não tem confusão. Se não, um fica triste, outro triste, outro triste, confusão demais.
P. E essa festa depois da morte dos peões? Como é a festa?
R. Ah, sim. Sei. Nós, quando a gente pinta de preto, é que vai fazer guerra com outro gente; depois vai pra aldeia, cantando, cantando, até chegar na aldeia. Então cada parente….depois fica só homem. Ai fica todo mundo junto pra fazer festa. (Durante cinco minutos, Raoni canta em Txukarramae o primeiro Akarokri da noite).
P. É uma festa alegre?
R. É uma festa de luta, quando a gente vai fazer mais força.
P. Você ficou alegre com a morte dos peões?
R. Quem matou os peões foram os fazendeiros. Coitados né? Mas como eu falei pra vocês, se eu vai junto, eu não deixava peões morrer. Coitadinho, né? Então eu falei pro meu pessoal: vocês não podem matar peão da fazenda, coitado né? Eles tem de trabalhar com patrão deles pra ganhar dinheirinha pra comprar coisa pra vida deles. Eu falei isso né. Mas quando o pessoal chegou lá, teve dois caras que falou que índio é bobagem, vagabundo, galinha, cachorro. Então o pessoal ficou brabo e matou logo. Mas eu não gostei. Se fosse um fazendeiro, não tinha problema. Eu pode brigar com fazendeiro sem problema.
P. Raoni, pra terminar, gostaria que você falasse de você. Quantos anos você tem?
R. Eu não sei. Quando eu era rapaz novo já conhecia o Orlando e o Cláudio (Vilas Boas).
P. E filhos, quantos você tem?
R. (conta nos dedos) Nove filhos (volta a contar) 3 homens, 3 mulheres e morreu dois homens e uma mulher. Um homem e uma mulher morreram de malária. O outro morreu de trovão, pegou um choque, um raio e morreu.
P. Como é que vocês chamam isso (aponta para o batoque)
R. Ah, em nossa língua chama akokakô.
P. E porque você usa o akokakô?
R. A gente usa pra ficar mais valente, ter mais força, mais coragem.
P. Mas o Mekaronty, seu sobrinho, é Txukarrame e não usa o akokakô…
R. Ah, o Mekaronty não tem, porque agora ninguém mais que é jovem usa. Depois que apareceu o branco, ninguém mais usa o akokakô.
P. (Provocando) Quer dizer, então, que com a chegada do branco e a perda do akokakô os jovens não tem a mesma coragem que você tem?
R. (uma longa e prolongada risada)
P. Você deu uma borduna de presente ao Nobre da Veiga?
R. Eu dei. Ele pediu, eu dei.
P. Você não tem medo que ele use contra você?
R. (outra longa risada). Capaz que sim. Capaz que sim.
OBS – (Ribamar Bessa e Paulo Suess, para o Porantim, jornal em defesa dos povos indigenas. CIMI. Manaus, ano III, no. 22, setembro de 1980. As fotos originais em preto e branco foram tiradas há 37 anos. Numa delas, o mapa original foi trocado aqui por um mapa colorido mais recente do Xingu numa montagem feita por Amaro Júnior da Ugagogo de Manaus.