São muitas e variadas as tentativas de explicação da degenerescência do quadro político brasileiro que nos trouxe a este ponto lamentável em que nos encontramos. Há interpretações para todos os gostos e filiações, desde as que remontam à nossa formação de país, Estado e nação (lamentavelmente nesta ordem), fundada na predação do meio ambiente, no escravismo e no etnocídio das populações originais, àquelas formulações que radicam nossos males presentes ora na falência da democracia representativa, ora no esgotamento do “presidencialismo de coalizão”, ora numa coisa e outra, frente e verso do mesmo fenômeno. Talvez todas essas hipóteses de trabalho sejam pertinentes, principalmente se pudermos vê-las como um conjunto.
Estou convencido de que muito do que vivenciamos – e resumo a tragédia na emergência da extrema-direita, consubstanciada na eleição e governo do capitão Jair Bolsonaro – decorre da forma calhorda como as chamadas elites brasileiras negociaram a transição da ditadura para a “nova república”: o compromisso de jogar tudo para debaixo do tapete.
A história mostra com rudeza que de nada nos valeu ignorar a realidade por não ter coragem de enfrentá-la. O reacionarismo castrense ativo, a rediviva preeminência da farda sobre o poder civil, as hordas bolsonaristas reivindicando intervenção militar e ditadura, resultam do fato de havermos transitado da ditadura para a democracia consentida sem “passar a limpo” o regime militar.
Apesar da falência do regime, levado às cordas pelo rotundo fracasso político e econômico (um só dado: a inflação em dezembro de 1984 marcava 215,26% a.a.), os militares, acuados pela quase unanimidade da vontade nacional que nas ruas reclamava por democracia, contaram com a tibieza de nossos príncipes para ditar as condições mediante as quais permitiriam a abertura do processo que então se chamava de “redemocratização” (a eleição de Tancredo Neves e mais tarde a posse de Sarney). Chegaram mesmo, com a covardia de nossos autonomeados procuradores, a estabelecer os termos da convocação da constituinte de 1987-1988 e ditar seus limites, como a intocabilidade da anistia restrita, e a segurança de que não seriam apurados os crimes de terrorismo, tortura e assassinatos cometidos durante os 21 anos do regime dos generais-presidentes. Foram além: acompanharam os trabalhos da constituinte, pressionaram parlamentares e lograram, até, sob a ameaça de impedir a promulgação da Carta, alterá-la, quando seu texto já estava sendo impresso na gráfica do Senado, para impor a atual redação do art.142, uma aberração jurídico-política, que só tem servido para pretextar ameaças ao livre exercício dos poderes republicanos. A violência foi comandada pelo ministro do exército de Sarney, gal. Leônidas Silveira, que chegou mesmo a ameaçar de prisão o relator da Constituinte, Senador Bernardo Cabral. Este episódio está registrado por Aldo Arantes (bravo constituinte de 1988) em seu recente Por que a democracia e a Constituição estão sendo atacadas?, p 72 e segs., cuja leitura recomendo.
A conciliação em 1984-1985 ganhou o nome fantasia “Aliança democrática” e um manifesto (“Compromisso com a nação”) onde se lê: “Este pacto político propugna a conciliação entre a sociedade e o Estado, entre o povo e o Governo. Sem ressentimentos, com olhos voltados para o futuro, propõe o entendimento de todos os brasileiros”. Está assinada por Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Aureliano Chaves e Marco Maciel.
Por “conciliação” entenda-se passar uma borracha na então história recente.
Não bastava, porém, somente cegar-se diante do passado, pois se tratava já agora de não considerar o futuro. Em nome de uma conciliação capenga, de uma governabilidade incerta, os governos civis, inclusive nossos governos de centro-esquerda, renunciaram mesmo a uma discussão séria sobre o papel das forças armadas brasileiras em tempos de paz e sua restrita destinação constitucional. Continuaram se considerando, se comportando e sendo aceitas como um “poder” à parte no ordenamento institucional. A formação de oficiais – que os desabilita para a democracia – permaneceu como questão-tabu, e os militares mais se enfurnaram em sua bolha, envenenados por uma doutrinação estranha aos nossos interesses. Em pleno século XXI, reproduzem os códigos da guerra fria, servindo de instrumento aos jogos da geopolítica do império. Daí a sustentação do bolsonarismo, nada obstante uma política que se choca com os interesses do país e de seu povo.
Política que um ministro do STF já definiu como genocida.
A presidente Dilma Rousseff, corajosamente, tentou enfrentar o desafio mediante a Comissão da Verdade, mas o tema foi logo interditado, mesmo dentro do governo, e não sensibilizou a opinião pública. Não se abriu a um grande debate nacional e por isso mesmo não levou às últimas consequências a denúncia dos abusos e crimes identificados, porque o povo, a consciência coletiva, permaneceu desinformado. E um povo que ignora sua própria história está condenado ao desastre – como, aliás, estamos testemunhando.
A nação não passou a limpo os 21 anos da ditadura, e por isso as gerações de hoje não têm consciência da exata dimensão do movimento que preparou o golpe militar de 1964, de modo que pouco podem dimensionar os riscos presentes. Para a instauração da ditadura castrense, e sua sustentação, foram fundamentais o apoio da grande imprensa, do clero católico e do que hoje se chama “mercado”, o poder econômico sob todas as suas facetas. Desses agentes não se conhece autocrítica – ressalve-se o mea-culpa tardio das Organizações Globo e todos voltaram a atuar contra a democracia, pois todos estão comprometidos com a ascensão do bolsonarismo. As poucas dissensões liberais são unânimes em defender sua face mais perversa, o neoliberalismo, pai e mãe da desconstituição da economia nacional e do desemprego.
Diante da falência política do bolsonarismo (a história não se repete, mas no Brasil ela é recorrente) e a iminência de sua derrocada, a casa grande, ciosa de seus interesses (a “pauta Guedes”) volta a pregar a ladainha da conciliação que, no caso presente, é deixar tudo como está e olhar as coisas daqui para frente. Para tanto O Globo, em editorial disfarçado, admite, até, rever seus conceitos e preconceitos sobre o presidente Lula e o PT. Sem uma vírgula de autocrítica por sua participação ativa na condenação injusta do ex-presidente, no seio de sua contribuição, igualmente decisiva, para a construção da farsa/conspiração da Lava Jato.
Para rompermos com essa cadeia de fatos que se sucedem de forma repetitiva, evitarmos que os crimes presentes sejam assimilados ou “naturalizados” pela conciliação, para, amanhã, voltarem à tona, como voltam o militarismo e as ameaças contra a democracia, é preciso eviscerar o atual regime de perversão que se instalou entre nós a partir da derrubada de Dilma Rousseff e o governo de Michel Temer, que organizou a transição para o bolsonarismo.
A grande tarefa de limpeza democrática não estará concluída com o fim do mandato do capitão, seja qual for o seu termo, antecipado ou não pelo impeachment que tarda, seja pela anulação das eleições eivadas de ilegalidade, seja por qualquer outra fórmula legal que os juristas e os militares sabem engendrar para dar saída às crises institucionais.
Precisamos de uma grande discussão nacional – instrumento de devassa – sobre os crimes que se vêm cometendo desde 2014, o papel insidioso do ministério público e do judiciário, os crimes da lava jato e seus atentados contra os interesses nacionais, os crimes da grande imprensa promovendo a antipolítica, o papel do poder econômico na articulação do bolsonarismo e do golpismo, o papel dos generais que participam da récua palaciana, as interligações com a direita internacional, os crimes contra a soberania nacional, o meio ambiente, as civilizações indígenas, os crimes contra a cultura, a ciência e o conhecimento, os crimes contra a federação, enfim, os crimes contra a vida de que falam as milhares de vidas ceifadas pela irresponsabilidade do governo diante da epidemia do Covid-19.
Como?
Constituindo desde já um fórum, na feição de um tribunal popular, para apurar e denunciar os crimes do atual regime de exceção permanente, para que, consciente, a nação jamais permita que se repitam. Duas figuras têm as necessárias condições cívicas e morais para liderar esse movimento patriótico: Fábio Konder Comparato e Leonardo Boff.
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia