Deitado na rede de fibra de tucum, cada um dos dois se embalava, sozinho, nas noites quentes de Rondônia. Já sonhavam um com outro? Quem sabe? O certo é que nunca tinham se visto. Estavam separados por rios e florestas, numa distância de 350 km. Ele morava em Cacoal, ela em Alta Floresta do Oeste. Até que recentemente, com o apoio da filha, ela o adicionou como amigo no Orkut e eles, então, se conheceram virtualmente. Foi aí que deitaram e rolaram, dessa vez juntos, no fundo de outra rede: a net.
Durante um ano, trocaram mensagens que atravessaram o ciberespaço, permitindo que afinassem o violino. “No começo era só amizade, depois ele quis mais”- ela contou ao jornalista Marcos Lock. Segredos e confidências eram cochichados pelas pontas dos dedos. O relacionamento evoluiu para conversas frequentes através do MSN Messenger. Os papos foram revelando afinidades e construindo cumplicidades. Pa-papinho vai, pa-papinho vem, quando caíram em si, já estavam namorando. Por enquanto, virtualmente.
Aí deu vontade de um contato pessoal face to face. Marcaram um encontro. Em abril do ano passado, Tori, que é índia Tupari, saiu de sua aldeia, na Terra Indígena Rio Branco, e foi visitar em Cacoal o índio Gasodá, que pertence ao povo Paiter Suruí. Não deu outra. Os dois se casaram no início do ano, num evento que foi registrado pela Folha de Rondônia: “Namoro pela web leva casal indígena rondoniense ao altar” (25/03/2010).
A Maloca Digital
O namoro e casamento de Gasodá e Tori é apenas uma das tantas consequências da crescente atuação dos índios no ciberespaço, que marca a apropriação por eles das tecnologias digitais. Nos últimos anos, os índios criaram sites, blogs, portais, comunidades virtuais, facebooks, fotologs, onde trocam experiências e informações e publicam textos, fotos, desenhos, notícias, músicas, vídeos.
No Brasil, índios de diferentes línguas e etnias foram estimulados a usar a internet por organizações governamentais e não governamentais. Embora a situação ainda seja bastante precária, inúmeras das 2.698 escolas indígenas existentes nas aldeias, frequentadas por mais de duzentos mil alunos, foram dotadas de computadores. Ali onde isso não foi possível, os computadores dos postos de saúde da FUNASA foram disponibilizados dentro dos ‘Pontos de Cultura’ no Programa GESAC – Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão.
Essa situação permitiu que logo surgissem, em 2001, os primeiros sites indígenas, segundo Eliete Pereira, do Centro de Pesquisa Atopos, da ECA/USP, que andou mapeando a presença indígena na net, ainda bastante irregular. Ela encontrou três tipos de sites: os sites de organizações indígenas, os sites de etnias e os sites pessoais.
Os primeiros são mantidos na rede por organizações com abrangência local, regional ou nacional e estão associados à luta por direitos pela terra, pela educação bilíngue, pela saúde, constituindo-se em ferramentas de reivindicação política. É o caso, por exemplo, do portal da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, ou o da FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.
Já os sites de etnias são criados para dar maior visibilidade étnica frente à sociedade nacional e internacional e para mostrar a arte de cada grupo, a produção do artesanato, os padrões gráficos, as narrativas, a língua. É o caso dos Baniwa, do Rio Negro (AM), ou dos Ashaninka, do Acre e de tantos outros, que participaram, em 2005, do I Seminário Rede Povos da Floresta, realizado no Rio de Janeiro, para discutir o acesso deles à tecnologia da informação e a conexão à internet.
O terceiro tipo são os sites pessoais e individuais, que utilizam a internet de forma inovadora, como o do escritor Daniel Munduruku, que apresenta os seus livros e dialoga com leitores, ou o da escritora Eliane Potiguara. Os índios que participam dos cursos de formação de professores indígenas ou de cursos universitários aprendem a lidar com o computador, trocam informações via e-mails, orkut, msn, skype. Eles estão agora lutando para demarcar um novo tipo de território no ciberespaço.
O Ciber Território
Nesses territórios, os usuários indígenas da internet divulgam noticias sobre seus problemas, articulam redes de apoio e acabam sendo mediadores de conflitos indígenas junto aos canais e veículos tradicionais de informação e às próprias instituições governamentais. Essa nova prática tem permitido alguns grupos a fiscalizar com maior empenho a gestão pública dos recursos destinados às populações indígenas e a denunciar as violações aos direitos constitucionais dos índios.
Foi no ciber território que Gasodá e Tori se conheceram. Eles vivenciaram experiências diferentes com a internet. Para Gasodá, que tem mais de 650 amigos no Orkut, a rede ajuda a fazer amizades e a “quebrar o gelo” entre pessoas desconhecidas: “Eu conheço muita gente através da internet, porque conversamos sobre assuntos indígenas pelo MSN. E quando a gente se encontra pela primeira vez, parece que já se conhece há muito tempo e aí é só chegar e cumprimentar: ah, você é que é o fulano, dá um abraço. É como se fosse uma amizade antiga”.
Já Tori vive numa aldeia onde os jovens e adultos “não conhecem muito a internet”, mas quando se fala em computadores, eles ficam muito animados, têm vontade de saber mais. “Quando vão à cidade, eles vão e ficam olhando, não chegam a tocar, eles têm receio de tocar e quebrar”.
Yakuy Tupinambá, integrante do Projeto Índios Online, diz que a internet está promovendo a abertura de horizontes, o que contraria o pensamento daqueles interessados em manter os índios amordaçados. “A internet trouxe-nos novos significados, sem que isso implique no abandono das nossas tradições. Conectar-se ao mundo através da internet é ter direito a ter um rosto, e fazer ouvir nossa voz, abrindo uma janela para o mundo” – completa Yakuy.
Os índios confirmaram essa posição em junho de 2005, durante a Conferência Regional da America Latina e Caribe sobre Sociedade da Informação. Nesse evento, eles aprovaram a Declaração Indígena do Rio de Janeiro, onde afirmam que estão preparados para o inevitável encontro entre os conhecimentos tradicionais e a modernidade, “caminho a ser percorrido para nossa sobrevivência física e cultural, que nos assegura direitos de acesso aos novos conhecimentos e à informação”.
A Caixa da língua
A presença indígena na internet contribuiu para o surgimento de algumas questões relacionadas ao uso da língua e à afirmação da identidade. Se Gasodá, por exemplo, enviasse suas mensagens em língua Paiter Surui, um idioma da família linguística Mondé, provavelmente não haveria namoro e casamento, porque a língua de Tori – o Tupari – pertence à outra família linguística e eles não se entenderiam.
Por isso, quando índios de línguas diferentes se comunicam, usam o português, aliás, uma deliciosa variedade do português escrito, que pode ser apreciada, por exemplo, na comunidade colaborativa de aprendizagem Arco Digital, onde mais de 100 índios de diferentes etnias interagem, com programação diária de vários chats temáticos. Eles brincam com a língua, sem medo de errar e sem censura, detonando regras normativas de ortografia, de pontuação e de sintaxe, como estão fazendo na internet os jovens nativos de qualquer língua.
Essa é uma das características da comunicação mediada pelo computador, que deu origem a uma língua denominada de netspeak pelo linguista irlandês David Crystal. Ele observa que os e-mails, por exemplo, têm sido chamados de ‘fala escrita’, de ‘cruzamento entre conversa e carta’ porque misturam a escrita com a fala. “No geral, o netspeak é mais compreendido como uma linguagem escrita que foi empurrada em direção à fala do que uma linguagem falada que foi escrita”.
Talvez por isso, os índios, que pertencem a sociedades ágrafas, com forte tradição oral, se sintam atraídos por esse novo campo do discurso, no qual se desenvolvem com muita agilidade, porque nele reencontram a aldeia cibernética, marcada por traços da oralidade e pela comunicação através de imagens.
Essa aldeia cria também um novo espaço social para o uso das línguas indígenas. No curso que ministro para professores guarani no Paraná, eles aproveitam as horas vagas para ocupar o laboratório de informática, e lá se comunicam por e-mail com outros índios da mesma etnia em língua guarani. Os guarani do Rio de Janeiro, por isso, denominaram o computador de ayvu ryru, que significa, ‘caixa de guardar a língua’.
Aqueles que aceitam as contínuas mudanças na sua própria cultura, mas acham que as culturas indígenas devem permanecer congeladas para serem “autênticas”, acreditam ingenuamente que o uso da internet pelos índios compromete a identidade étnica.
Os índios, no entanto, aprenderam a conviver com esse processo contínuo de tensão entre o tradicional e o novo. Eles estão permanentemente recriando a tradição, introduzindo novos sentidos e novos símbolos. E é claro, não deixam de ser índios, ou então os brasileiros, que usam a internet, ferramenta que não é tecnologia nacional, deixariam também de ser brasileiros.
P.S.1 – Quem quiser saber mais sobre o tema, vale a pena ler Eliete da Silva Pereira: “Nos meandros da presença étnica indígena na rede indígena” In: DI FELICE, M. (org) Do público para as redes – a comunicação digital e a novas formas de participação social. São Caetano do Sul: Editora Difusão, 2008, pp. 287-333.
P.S. 2 – Agradeço a interlocução com a mestranda Renata Daflon, do Programa de Pós-
Graduação em Memória Social da UNIRIO, que desenvolve pesquisa sobre “Memória Criativa na Blogsfera: contribuições para pensar o ‘patrimônio em rede'”, orientada pela doutora Vera Dodebei.