Cirurgião dentista: Bruno Miranda da Rocha. Esta placa deveria estar na porta do consultório, em Aracaju, de um jovem nascido em Natal (RN) e diplomado pela Universidade Federal de Sergipe, em 2003. Mas eis que, de repente, ele é convidado por um amigo para trabalhar no Distrito Sanitário Indígena de Roraima, com prazo de 15 dias para se apresentar nas aldeias. Não hesita um minuto. Vende tudo o que acabara de comprar: cadeira odontológica e equipamentos ainda sem uso. E se pirulita. Desembarca no aeroporto de Boa Vista na madrugada de 28 de abril de 2004. Começa uma nova vida.
– Quem convive com os índios nunca mais será o mesmo, a gente se deslumbra quando descobre que outras formas de vida são possíveis – afirmou Darcy Ribeiro baseado em experiência própria.
O dentista potiguar, já no dia seguinte à chegada, se deslocou em um teco-teco à comunidade Cumanã I na região Surumu, ao encontro dos Makuxi, com quem aprendeu outros modos de cuidar dos dentes. Ali verificou que sua capacitação profissional, adequada para o meio urbano, não lhe servia para avaliar o kurawá (sisal), planta que cresce às margens dos igarapés e de onde é retirado um fio fino e resistente usado para a higiene dentária, nem o arbusto com nome metido à besta – byrsonima crassi-folia – o popular mirixi ou murici, de cuja casca os índios extraem o carvão para limpeza dentária.
– “No tempo de murici, cada qual cuida de si” – ensina a sabedoria popular. O provérbio, neste caso, não faz apologia ao egoísmo, mas aos cuidados de higiene bucal. O dentista observou que os índios tratam os dentes muito bem com carvão de cascas de várias outras espécies vegetais: darora (leptolobium nitens), angico (anadenanthera peregrina) e pau-rainha – uma leguminosa, de cor laranja, que só existe na savana roraimense. Para evitar cárie, fazem bochecho com chá de dente da capivara ou do porco e de mangarataia (gengibre). Mastigam raiz de timbó, usam talo da folha de buriti e do coco.
Saúde bucal
Com curiosidade etnográfica, o dentista potiguar se dedica a observações etnobotânicas e etnofarmacológicas no campo da medicina tradicional, vivenciando tudo o que pode. Só não esfregou lesma no dente para endurecê-lo e nem lavou a boca com fel de boi e pimenta malagueta – como fazem alguns índios, mas o resto, fez de tudo. Experimentou pessoalmente o fio do kurawá e ficou satisfeito com os resultados. Sua maneira de trabalhar e de viver foi mudando desde o primeiro caso que tratou:
– Num exame clínico em um menino de três anos, me assustei com a situação dos dentes anterossuperiores. Os quatro incisivos estavam cariados e só restava a raiz. Precisava extraí-los. Chamei a mãe e dei um sermão nela, que culpou o pai da criança, por haver ele trabalhado com uma lima. Na cultura Makuxi, quando nasce uma criança o pai precisa fazer o resguardo, não pode trabalhar com essa ferramenta para evitar que os dentes da cria apodreçam. Diante disso, vi que meus conhecimentos sobre etiologia de doenças bucais já não eram suficientes para tratar os índios.
Foi aí que Bruno decidiu estudar a cosmologia Makuxi para saber como é que eles viam o processo saúde-doença-cuidado. Buscou apoio num curso de especialização em saúde pública para sistematizar suas experiências com os índios de Roraima, depois fez mestrado e doutorado:
– Na minha posição de aprendiz, foi uma descoberta atrás da outra. Deparei-me com uma cosmovisão encantadora e, ao mesmo tempo, assustadora para a perspectiva do modelo biomédico dominante. A cárie não tinha mais relação com a bactéria. A escova, a pasta e o fio dental não eram mais imprescindíveis para a higiene bucal. O conhecimento tradicional explicava um novo modo de entender, que passou a fazer parte das minhas palestras de educação em saúde e despertou atenção de outros profissionais.
As orações
Foi o caso de um colega europeu que ao visitar as aldeias de Roraima pensou em realizar um projeto para incluir nas sociedades urbanas os saberes, as técnicas e os recursos usados pelos índios. No entanto, o preconceito determina que a via da interculturalidade só tenha uma direção: daqui pra lá. As práticas tradicionais de higiene em muitas comunidades vêm sendo substituídas pela escova e creme dental, nem sempre com igual eficácia, porque tais produtos industrializados não crescem em árvores, não sendo portanto de fácil acesso.
Durante quinze anos, Bruno trabalhou com saúde bucal no Conselho Indígena de Roraima no convênio com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), na Gerência de Saúde Indígena e na Coordenação Geral da Atenção Básica na Secretaria de Estado de Saúde de Roraima. Aprovado em 2011 no concurso para professor da Universidade Estadual (UERR), assumiu as disciplinas Saúde Indígena e Saúde Coletiva. Depois, cursou o mestrado em Ciências da Saúde. Agora, nesta terça (27/11) obteve o título de doutor.
Sua tese de caráter transdisciplinar atravessa os campos das biociências, da antropologia, da pedagogia e da história, particularmente da nova história cultural, para dar conta do cuidado em saúde representado nos folhetos da etnia Makuxi do Centro de Documentação Indígena (CDI) e do Arquivo Indigenista da Diocese de Roraima. Centrou a pesquisa nos dois volumes do Makuxi Tarumu (1987), que contém orações em língua Makuxi para prevenir e curar doenças e no Makuxi Panton (1988) com narrativas míticas que ensinam sobre as doenças e as formas de cura.
Mais médicos
O autor usa como referência teórica os estudos sobre a história do livro e da leitura de Roger Chartier, professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, que discute as transferências entre a cultura oral e a cultura escrita, mostrando as diversas práticas de participação de indivíduos não-letrados na cultura letrada e focando o livro como um objeto de poder, tanto quanto certos objetos rituais dos pajés.
A tese trabalha ainda outros livros: “Registrando os conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais na comunidade do Ticoça” (2014), de autoria da indígena Jocivânia da Silva Oliveira; “Filhos de Makunaimi” (2004) e “Onças, Antas e Raposas: Mitos do povo Makuxi registrados pelo monge beneditino Dom Alcuíno Meyer entre 1926 e 1948”, sempre na perspectiva de Chartier que analisa a materialidade e estética dos folhetos.
Um dos seus capítulos mais interessantes é justamente o intitulado “Medicina Indígena e Biomedicina: concorrentes ou parceiras?” no qual o autor esclarece que as categorias de doenças não são universais, mas social e etnicamente classificadas e que a etnomedicina pode ajudar o cientista a compreender as doenças, seus sintomas e o valor de tratamentos diferenciais em áreas específicas.
O doutoramento de Bruno Miranda da Rocha se dá no momento em que um terço das vagas abertas no Amazonas, no edital emergencial do Mais Médicos, continua sem candidatos. São 112 postos de trabalhos, dos quais 68 em distritos de saúde indígena. Não é qualquer um que deixa de abrir um consultório na cidade para se dedicar à população carente. Só mesmo um médico cubano ou um dentista nordestino cabra-da-peste.
P.S. 1 – Bruno Miranda da Rocha: Makuxi Tarumu: o cuidado em saúde representado nos folhetos da etnia Makuxi em Roraima na década de 1980. Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da UNIRIO. Banca: Wellington Amorim (orientador), Ananda Machado (UFRR), Fernanda Nascimento (UFRJ), Luiz Henrique Pellon (Unirio), José R. Bessa Freire (Uerj-Unirio).
P.S. Não desisto. Um dia ainda levo para visitar a área indígena dois profissionais competentes: Roberto Erthal, mestre em cirurgia e traumatologia buco maxilo facial e seu filho André Erthal, ambos responsáveis por esse sorriso aqui que encanta as meninas de 70 anos do condomínio onde moro.