Dezembro de 1987. Chovia. Chuvinha fina e persistente que não intimidou o poeta e ex-ministro da Educação Abgar Renault, então com quase 90 anos. Ele saiu de casa com sua esposa, dona Ignez, para a solenidade de posse do filólogo Celso Cunha na Academia Brasileira de Letras (ABL) no centro do Rio de Janeiro. Passou antes na Maison de France, de onde podia ver automóveis, ônibus, caminhões e motos correndo velozmente na pista, buzinando, queimando óleo e soltando fumaça. Parecia até que os carros do mundo inteiro haviam combinado cruzar aquela esquina, naquela hora.
O casal precisava atravessar a Av. Presidente Antonio Carlos. A calçada fervilhava de gente. Na correria das compras de natal, as pessoas se acotovelavam, com seus guarda-chuvas, ansiosas, esperando mudar o sinal. Durou uma eternidade, mas os carros, finalmente, deram uma trégua e pararam. A multidão avançou. No meio dela, Abguar arrastava os pés, ziguezagueando diante de um ônibus mais afoito que havia invadido metade da faixa de pedestres. Foi aí que o motorista, impaciente, deu várias aceleradas em ponto morto. O motor produziu um ronco ameaçador. O poeta gritou, então, para sua mulher:
– Corre, minha velha, que um deles já nos viu!
Esse é, hoje, o grande problema das cidades, porque na realidade não foi só um deles que nos viu. Todos eles já nos viram e procuram nos acertar. E no Brasil, eles são milhões. No ano passado, a frota de automóveis brasileiros era de 64.817.974 veículos, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), vinculado ao Ministério das Cidades. Considerando que anualmente são fabricados quase 5 milhões de carros, podemos estimar em 70.000.000 o total de veículos que entopem nossas ruas e que estão nos vendo.
Aquela rua que Abgar Renault, cantando, mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhantes para dona Ignez passar não nos pertence mais, não existe mais como espaço poético e muito menos como espaço público. As pessoas foram enxotadas das ruas, agora ocupadas por máquinas assassinas. Até as calçadas, que eram o último reduto dos pedestres, estão se transformando em vias por onde circulam irregularmente bicicletas, motos e às vezes até carros, que não tendo onde estacionar se aboletam no passeio público, dificultando a movimentação de pedestres. Ontem, um carro trafegando pela calçada quase me atropelou.
Nós não temos mais como fugir dos carros, que invadem nossa existência cotidiana e nos atacam diariamente. Nem as feras selvagens, nem os bichos da floresta constituem perigo semelhante ao dos carros nas cidades. As estatísticas são alarmantes. Em cinco anos, de 2005 a 2009, o número de mortos em acidentes de trânsito no Brasil alcançou a soma de 292.752. Cerca de 200 pessoas morrem diariamente nas ruas do nosso país em acidentes de trânsito, sem contar as centenas de milhares de feridos graves.
Os mortos na Guerra do Paraguai no século XIX foram insignificantes se compararmos com as vítimas da atual guerra do trânsito. A mortalidade no trânsito é o segundo maior problema de saúde pública do Brasil, competindo com a desnutrição, as doenças de coração e o câncer.
Esse modelo de transporte, provocador de mortes, de doenças, de um exército de estropiados e de inválidos, está esgotado. Engarrafamentos diários gigantescos, congestionamentos, horas e horas perdidas tentando ir de casa para o trabalho são evidências de que, com esse conceito de transporte, é impossível desatar o nó do trânsito. Não adianta alargar as avenidas, fazer viadutos, abrir novas pistas – porque elas serão todas ocupadas por carros, que não conseguirão circular livremente.
A falência do modelo fica ainda mais evidente quando sabemos que diariamente toneladas de gases poluentes são lançadas na atmosfera, envenenando o planeta. Numa entrevista que fiz com Glauber Rocha, em Paris, em 1973, quando era correspondente lá do semanário Opinião, ele abriu os braços em pleno Quartier Latin e como se fosse personagem de um dos seus filmes declamou em tom profético:
– Os russos já sabem como ir à lua. Os americanos também. Os chineses estão se preparando. O homem vai ter que se picar do planeta terra.
Efetivamente, se essa forma não for substituída por outra que planeje e gerencie o caos do trânsito em nossas cidades, que faça investimentos pesados em transportes públicos, o homem vai ter que deixar o planeta terra e se picar para outra galáxia, porque sequer poderá exercitar aqui seu direito constitucional de ir-e-vir.
Te cuida, leitor (a), eles já nos viram! E estão nos atacando! Vamos reagir?