Quem foi Tércio Miranda? Levanta a mão ai quem sabe! Não é nome de rua, de praça, de monumento, de hospital, não é ensinado nas escolas, e nem aparece na mídia. Caiu no esquecimento? Na lembrança oficial sim, mas não na memória subterrânea de alguns lutadores, onde sempre permanece, mesmo nesses tempos bicudos. “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” escreveu Milan Kundera.
Tércio Miranda, já falecido, foi um tipógrafo anarquista, que viveu em Manaus no período da borracha. Quem quiser conhecê-lo melhor e lutar contra o poder e o esquecimento, compareça no próximo dia 29, às 16 hs, na Casa do Trabalhador, Rua Marcílio Dias, onde ele vai receber uma homenagem póstuma durante o lançamento da edição especial comemorativa dos 96 anos de ‘A Lucta Social’, jornal que criou em 1914.
Naquela época, a velha ortografia colocava um “c” no meio da luta e escrevia com “ph” palavras que hoje são grafadas com “f”, como pharmácia. Dessa forma, quem falava frases com a boca cheia de farofa feita de farinha espalhava “ph” pra tudo que é lado. Uma brincadeira infantil consistia em pedir ao colega que repetisse “a mamãe é rica porque pode”, esticando os dois lados da boca com o polegar e o indicador.
Foi assim, esticando os dois lados da boca, que ‘A Lucta Social’ abriu o bocão contra os ‘phoderosos’ que ‘phodiam’ tudo: reduzir salários, demitir, aumentar a jornada de trabalho, não pagar horas extras, num momento dramático em que as plantações de borracha no Ceilão e na Malásia faziam a economia do Amazonas mergulhar numa crise profunda. Os arigós e os cabocos abandonavam os seringais e vagavam pelas ruas de Manaus, pedindo esmolas. Solidário, ao lado deles, estava Tércio Miranda.
Cadê a lucta?
Encontrei alguns exemplares desse jornal lá em Amsterdã, na Holanda, no Instituto de História Social (IISG), onde estive em maio de 1972, em companhia do historiador Victor Leonardi, ambos realizando pesquisas para o curso de pós-graduação que seguíamos na França. Quando voltei do exílio, trazia escondido uma cópia xerox de um exemplar com o carimbo: Internationaal Instituut voor Sociales Geschiedenis (IISG) – Amsterdam, que foi usada, em 1979, para editar o jornal do PT local.
Parece surrealista: um amazonense precisa ir à Holanda para conhecer um jornal de Manaus. É que na década de 1960, o IISG, preocupado com a queima de arquivos pelas ditaduras militares, percorreu países da América Latina, comprando documentação histórica de organizações, partidos, sindicatos e particulares. Formou, assim, rico acervo que está guardado num antigo armazém de cacau na zona portuária de Amsterdã, contando a história das lutas, das greves, das condições de trabalho.
Lá está o valente ‘A Lucta Social’, que traz sob o título a frase: “orgam operário livre”. Ele serviu de referência ao jornal mensal do PT no Amazonas que editamos em 1979. Com linguagem panfletária, sem prejuízo da informação, denunciamos a demissão de trabalhadores no Distrito Industrial, que haviam reclamado da comida podre servida no almoço. Não vou repetir o que aparece em artigos que estão no site Taquiprati: “Cadê a Lucta Social” (21/05/ 2006) e “A Lucta Social: 70 anos depois” (20/07/1984).
O dado novo digno de registro é que o jornal foi recriado pela quarta vez, agora em versão eletrônica (Luctasocial.blogspot.com) por Élson de Melo, “um operário lascado” – como ele se apresenta – da primeira geração do Distrito Industrial, “talvez o único operário remanescente da Diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos, eleito pela Chapa Puxirum, em 1983, que não virou empresário, nem está lotado em cargo público na máquina estatal do governo Lula, Eduardo ou Amazonino”.
Convivi com Elson na época da oposição sindical. Militamos juntos no PT. Tércio Miranda diria, seguramente, que o jornal por ele fundado está agora em boas mãos. A versão eletrônica explica que Elson “aceitou o desafio de retomar a ideia gloriosa de Tércio Miranda (primeira fase), Nicoláo Imentel (segunda fase) e Ribamar Bessa (terceira fase), todos editores do jornal A Lucta Social”.
Quem somos
Li o blog, que atualiza questões vitais para a população amazonense. Discute o meio ambiente, recolhe a polêmica sobre a barragem de Belo Monte e reproduz as informações proporcionadas pelo movimento SOS Encontro das Águas. Informa sobre a Semana do Ecossocialismo, teoriza sobre a economia solidária, não deixa de fora nem temas como a poesia de Ferreira Gullar, a falta d’água em Manaus, o sistema de transporte coletivo conhecido como “estresso”, a situação dos camelôs e até as futricas e brigas internas dentro do PSOL, em reunião num porão da Rua Luiz Antony.
“Não é apenas o desafio de veicular uma nova fase do jornal que nos inquieta. O que nos leva a reeditar A Lucta Social é a falta de perspectiva na qual o Movimento Operário da Zona Franca de Manaus está mergulhado desde os grandes Movimentos Grevistas de 1985, 1986 e 1990. Principalmente quando constatamos que as atuais direções dos principais Sindicatos estão recheadas de burocratas e vendilhões dos direitos e esperanças dos trabalhadores” – escreve Elson no editorial.
Ele explica que “a nova fase do jornal A Lucta Social tem por princípio articular o movimento operário a partir do seu local de trabalho, visa orientar grupos de trabalhadores dentro de um programa de formação política e sindical voltado para o projeto estratégico do proletariado – o Socialismo – isso é, dar forma ao sonho dos criadores do jornal. Nosso objetivo é formar grupos de lutadores comprometidos com a história de transformação social”.
Os amargurados e desiludidos, que não veem mais possibilidade de mudar o mundo, acham que a luta, com “c” ou sem “c”, é coisa do passado, e que o socialismo é algo anacrônico. No entanto, a iniciativa de reeditar A Lucta Social é louvável em todos os sentidos, porque abre uma brecha de esperança e nos ajuda a saber quem, afinal, somos.
Fernand Braudel, historiador francês que não cessou de lutar, realizou pesquisas sobre o mar Mediterrâneo. Ele viveu mais de três anos no Brasil, no final da década de 1930, participando da organização da USP. Disse, com muita sabedoria: “A condição de ser é ter sido”. Cadê A Lucta Social? Está aqui, para nos dizer quem fomos e saber o que somos. A lucta continua.
P.S. – Impossibilitado de aceitar o convite para o evento na Casa do Trabalhador por residir em outra cidade, me sentirei representado com a presença de dois historiadores da Universidade Federal do Amazonas, Maria Luiza Ugarte Pinheiro e Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro, organizadores do livro Imprensa Operária no Amazonas.
muito boa iniciativa em prol da classe operária, porém ultimamente estou decepcionado com os sindicatos em que seus dirigentes estão mais preocupados nos seus próprios interesses e nos dos patrões, se eles pagarem.
Daniel Costa