Do CONJUR, Por Arion Escorsin de Godoy e Michele Lucas de Castro:
Como sabido, a Defensoria Pública, na forma do artigo 134 da Constituição Federal, é instituição de Estado destinada a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. No entanto, a par de ser uma instituição, a Defensoria representa o principal esforço estatal como política pública de acesso à justiça. Constituindo-se, assim, como política pública, deve manter a preocupação de diagnosticar o cenário vivenciado no contexto de atendimento, permitindo avaliar e direcionar os esforços institucionais. Por conta disso, temos tido a preocupação de diagnosticar os contornos de nossa atuação diária.
Feitas estas ponderações, relatamos que, entre abril e agosto de 2016, estivemos à frente da 1ª Defensoria Pública de Rio Grande, especializada em direito criminal, com atuação perante Vara Criminal daquela comarca. No curto período de trabalho, optamos por mapear as causas, consequências e peculiaridades dos processos criminais dos quais advinham a impetração de habeas corpus.
Nesse sentido, constatamos que entre 19 de abril e 1 de agosto foram impetrados 24 pedidos de habeas corpus. Houve concessão de duas liminares ordenando soltura, uma em caso em que se processava furto e outro em tráfico de drogas. No primeiro caso, o fundamento da ordem destacava a primariedade do acusado somada à ausência de violência inerente ao tipo penal. No segundo caso, frisou-se a ausência de evidências claras de traficância, além de se enfatizar a primariedade do acusado. Não houve outras ordens concedidas.
Em relação à fundamentação das prisões em primeiro grau, observamos que em todos os casos foram invocados como razão o abalo à ordem pública. Apenas em quatro hipóteses se fez referência a argumento adicional. Especificamente, em um processamento de furto, destacou-se a suposta personalidade voltada para o crime; em um homicídio, apontou-se a necessidade de assegurar a aplicação da lei penal; em caso de estupro, afirmou-se a possibilidade de fuga; em um roubo, a conveniência da instrução criminal.
Quanto às características pessoais, todos eram homens, de baixa instrução e renda.
No que tange ao momento da segregação, não obstante se tratasse de processos em andamento em meados de 2016, em três situações os réus estavam presos cautelarmente desde 2013, 9 desde 2015 e apenas 10 respondiam por fatos praticados no corrente ano. De outro lado, no momento da consolidação dos dados, oito acusados aguardavam sentença, quatro haviam sido pronunciados, nove condenados e três absolvidos em primeiro grau, portanto, pelo próprio Juízo que decretou a prisão.
Ademais, verificamos que quatro pessoas estavam sendo processadas por tráfico de drogas, quatro por furtos, 10 por homicídios — tentados ou consumados —, um por latrocínio, dois por porte de arma, um por estupro e dois por roubo.
Muito embora não se pretenda, nesse caso, atribuir precisão científica ao levantamento, alguns apontamentos verificados permitem conclusões interessantes. Ilustrativamente, constatamos que em cerca de 20% dos processos sentenciados houve decisão absolutória pelo próprio Juízo que decretou a prisão. Aproximadamente 40% dos presos respondiam por delitos sem violência ou grave ameaça. Ainda, que equivalente a 33% dos presos eram processados por delitos não hediondos, nem equiparados.
Outrossim, pode parecer preocupante a repetição exclusiva de ilações a respeito do abalo à ordem pública como fundamento quase exclusivo de custódias. Do mesmo modo, alarmante o dado que em mais de 10% dos casos havia presos que estavam cautelarmente segregados desde 2013, sendo, em todas as hipóteses, reputado o prazo de prisão como razoável pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Convém, ainda, deixar o registro de que a Vara em questão era conduzida por magistrado extremamente competente, o que reforça nossa preocupação por se acreditar que a situação aqui diagnosticada possa ter contornos ainda mais dramáticos em outros cenários menos favoráveis.
Portanto, concluímos pela necessidade de a Defensoria Pública perceber sua importância também na dimensão de política pública, eis que pode servir de instrumento importante para diagnóstico e proposição de soluções que assegurem a ampliação do acesso à justiça e afirmação da nossa tão vilipendiada Constituição Federal.
Arion Escorsin de Godoy é defensor público no Rio Grande do Sul. Mestre em Direito.
Michele Lucas de Castro é estagiária da Defensoria Pública. Acadêmica de Direito.