Por Rodrigo Haidar para o CONSULTOR JURÍDICO:
No próximo dia 3 de março, quando o ministro Luiz Fux tomará posse de seu assento no Supremo Tribunal Federal, o ministro José Antonio Dias Toffoli deixará de ser o mais novo ministro da Corte — na ordem de antiguidade, porque aos 43 anos de idade é ainda o mais jovem juiz do tribunal. Em pouco mais de um ano no Supremo, Toffoli conseguiu debelar a desconfiança de setores do Judiciário e da imprensa que enxergavam sua indicação como um ato simplesmente político-partidário.
A experiência de vida do jovem ministro lhe conferiu mais qualificação do que qualquer título acadêmico. Formado há 20 anos, antes de se tornar juiz militou ativamente na advocacia e exerceu importantes postos na República. Como subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, advogado eleitoral do PT e advogado-geral da União, adquiriu a musculatura jurídica que surpreendeu positivamente a todos que atuam na Suprema Corte.
Principalmente no quesito transparência. Ao terminar seu primeiro ano completo na Corte, a equipe do ministro preparou apostila com estatísticas como produtividade, número de advogados e autoridades recebidos em audiência, quantidade de processos recebidos e o percentual de cumprimento das metas impostas pelo Conselho Nacional de Justiça.
Na cartilha, distribuída a jornalistas e advogados e publicada no site do Supremo a pedido do próprio ministro, pode-se conferir que Toffoli atendeu 430 advogados e 390 autoridades no ano passado e que tomou mais de oito mil decisões em processos. O ministro considera importante divulgar os números como uma forma de prestar contas à sociedade.
Toffoli foi criticado por setores do PT que defendiam a aplicação da Lei da Ficha Limpa nas eleições de 2010 ao decidir que a lei altera, sim, o processo eleitoral. E, por isso, deveria respeitar a carência de um ano prevista na Constituição Federal para passar a valer. Amigos que compreendem bem seu papel e caráter saíram em sua defesa: “O Toffoli agora é ministro, deixou de ser advogado do partido ou da União”.
O ministro recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete no Supremo para uma entrevista, cujo objetivo era o de compor seu perfil para o Anuário da Justiça, que será lançado em março. Os principais trechos da conversa, onde Toffoli conta alguns episódios de sua carreira e revela sua visão do Direito e de mundo, o leitor poderá conferir abaixo.
Para o ministro, o tribunal tirou uma lição do impasse que se deu no mais polêmico julgamento do ano no Supremo, o da Lei da Ficha Limpa. Ele afirma que poderia haver o mesmo empate com a composição completa se um ministro se considerasse impedido para julgar a matéria: “Tal circunstância mostra a necessidade de o tribunal pensar soluções mais seguras, fixar regras mais claras para situações de empate”.
Toffoli não crê que o tribunal fique com a imagem arranhada por conta dos debates acalorados cada vez mais frequentes entre os ministros. Costuma dizer que o Supremo não é um clube de amigos e que isso é bom para a transparência e equilíbrio das decisões. “Não que as pessoas não se deem bem, mas não é um clube de amigos. E é bom que não seja, porque a ideia é que a manifestação do tribunal corresponda ao somatório das visões e pré-compreensões de cada um de seus ministros. Em certa medida, as ideias vencidas contribuem para legitimar a tese vencedora”, afirma.
Em matéria eleitoral, o ministro já se tornou referência e seus votos têm os olhos na realidade do país. Ao votar no julgamento que liberou as críticas de programas humorísticos em período eleitoral, sustentou que as críticas nunca estiveram vedadas. Mas revela preocupação com as eleições de 2012.
De acordo com Dias Toffoli, é necessário observar se a responsabilidade que a imprensa teve mesmo depois de as críticas estarem completamente liberadas na eleição presidencial vai se reproduzir na esfera municipal.
“Temos centenas de parlamentares que são donos de rádios e TVs. Muitos deles participam da disputa municipal, na condição de candidatos ou de apoiadores dos prefeitos em busca da reeleição. Uma coisa é a atuação no plano federal, com todos os mecanismos de controle, outra coisa é o eventual abuso restrito à pequena cidade ou na média cidade, onde há um poder maior de influência dos meios de comunicação, cujos titulares são os próprios políticos. Quem nasceu e conviveu no interior conhece bem o potencial de utilização dos serviços de radiodifusão em benefício ou em prejuízo de determinada candidatura”, afirma o ministro nascido em Marília, no interior de São Paulo.
Na conversa com a ConJur, Toffoli fez uma análise sob a perspectiva histórica de algumas das principais e mais recentes decisões do STF e falou das mudanças de entendimento no Judiciário: “A jurisprudência não pode ser estática, mas também não pode ser traiçoeira. Numa caricatura da divisão dos poderes, o Executivo cuida do presente, o Legislativo do futuro e o Judiciário do passado. Judiciário que quer cuidar do futuro ou do presente acaba tornando o passado instável”.
Leia a entrevista:
ConJur — O julgamento da Lei da Ficha Limpa foi, senão o mais importante, o mais polêmico do Supremo em 2010, principalmente em razão do impasse em torno da aplicação imediata da lei. O que é possível fazer para evitar isso?
Dias Toffoli — Não há dúvidas de que esse julgamento foi um momento de grande expectativa da sociedade em relação ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, principalmente porque estávamos em ano de eleições. E foi marcante pelo inusitado da situação, porque acabou se configurando um empate de cinco a cinco. Isso pode acontecer, como de fato ocorreu, diante da ausência de um ministro. Mas poderia se dar também com a composição completa, se um ministro se considerasse impedido para julgar a matéria. Tal circunstância mostra a necessidade de o tribunal pensar soluções mais seguras, fixar regras mais claras para situações de empate.
ConJur — Uma reunião prévia, informal, não poderia ter evitado essa situação?
Toffoli — Existe a tradição de não se fazer reuniões prévias. Isso traz vantagens e desvantagens. A vantagem é que torna o julgamento mais transparente. Cada um leva o seu voto sem saber como votará o colega. É da tradição desta Suprema Corte. Por outro lado, isso gera situações como a que vimos: diante de um empate, a definição do modo como se decidirá a matéria é feita ao vivo, em cores, transmitida pela televisão. Esse aspecto é bom por revelar que, no Supremo, nada é combinado. A decisão é de cada um. E o colegiado fala em nome de todos.
ConJur — Não é um clube…
Toffoli — Não que as pessoas não se deem bem, mas não é um clube de amigos. E é bom que não seja, porque a ideia é que a manifestação do tribunal corresponda ao somatório das visões e pré-compreensões de cada um de seus ministros. Evidentemente, há problemas nessa forma de obtenção do que se poderia chamar de una vox do colegiado. A doutrina contemporânea discute qual o método mais democrático, tomando-se como parâmetros os modelos americano e europeu. Por agora, creio que é esse o nosso caminho, mas que é necessário aperfeiçoá-lo. Em certa medida, as ideias vencidas contribuem para legitimar a tese vencedora.
ConJur — O julgamento sobre o humor nas eleições foi um ponto alto?
Toffoli — Foi também relevante porque mais uma vez se analisou o tema da liberdade de imprensa. O Supremo definiu a questão com grande maturidade, levando em conta a necessidade de se garantir um pleito isonômico, sem o abuso dos meios de comunicação, e sem impedi-los de opinar, criticar, de prestar o serviço público de informar a sociedade. Houve a liberação das críticas nas televisões e nas rádios, que são concessões e, por isso, tinham as maiores limitações legais. O importante é que a imprensa também mostrou maturidade ao não passar a agir sem critérios depois do julgamento. Não se observou, desde o julgamento, uma atuação dos meios de comunicação que tenha pesado ou influenciado no resultado das eleições. Espero que isso se reproduza nas eleições municipais.
ConJur — Mas o senhor não votou contra a liberação?
Toffoli — Votei no sentido de que a crítica sempre foi permitida pela legislação impugnada. Nunca entendi vedada pela lei eleitoral as críticas nos programas de telejornais e de rádios. Meu voto teve o objetivo de alertar sobre os efeitos da decisão nas eleições municipais. Minha preocupação é se essa responsabilidade da comunicação social, que é perceptível no âmbito da eleição presidencial, vai se reproduzir na esfera municipal, na medida em que nós temos centenas de parlamentares que são donos de rádios e TVs. Muitos deles participam da disputa municipal, na condição de candidatos ou de apoiadores dos prefeitos em busca da reeleição. Uma coisa é a atuação no plano federal, com todos os mecanismos de controle, outra coisa é o eventual abuso restrito à pequena cidade ou na média cidade, onde há um poder maior de influência dos meios de comunicação, cujos titulares são os próprios políticos. Quem nasceu e conviveu no interior conhece bem o potencial de utilização dos serviços de radiodifusão em benefício ou em prejuízo de determinada candidatura. Esse julgamento serviu para que eu expusesse uma diretriz político-constitucional que tenho pouco a pouco manifestado em alguns de meus votos, especialmente em casos mais emblemáticos: é preciso compreender as peculiaridades da federação brasileira e impedir que as assimetrias entre o poder central e as forças locais condicionem a interpretação da Constituição. É nesse mister que o Tribunal a que pertenço tem condições de contribuir para a estabilidade institucional e a preservação dos direitos fundamentais.
ConJur — O senhor destaca algum outro julgamento importante?
Toffoli — Sim. Tive a oportunidade de me convencer e mudar de posição no julgamento no qual o Supremo julgou inconstitucional a vedação de o juiz converter a pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, no caso de condenados por tráfico de drogas. Acompanhei os colegas que entenderam que a proibição feria o princípio da individualização da pena. Com os debates, persuadi-me que não se pode aceitar a prisão sob o fundamento reducionista da lei. Dito de outro modo, o confronto entre a lei e o princípio constitucional da individualização da pena fez-me ver que seria necessário emprestar ao juiz, senhor das circunstâncias do caso concreto, uma margem de conformação maior, levando-se em consideração os direitos fundamentais do réu.
ConJur — Quando isso acontece, sempre se ouvem críticas de que a jurisprudência do Judiciário, hoje, é muito flutuante. Mas a jurisprudência não pode ser estática, certo?
Toffoli — Não pode ser estática, mas também não pode ser traiçoeira. Há um caso julgado pelo TSE que exemplifica bem a diferença. Em março de 2008, o TSE editou uma resolução sobre a possibilidade de quem já ocupou dois mandatos seguidos em uma cidade, disputar um terceiro mandato pela cidade vizinha. Pela resolução, o prefeito teria de se desincompatibilizar e poderia concorrer.
ConJur — Sair seis meses antes das eleições?
Toffoli — Exato. A resolução sinalizou para um conjunto de prefeitos, que estavam em segundo mandato, que eles poderiam ser juridicamente admitidos pela Justiça Eleitoral, desde que renunciassem ao mandato. Muitos renunciaram. Depois, houve impugnação no TSE e em novembro de 2008, em um caso concreto, o TSE decidiu que essa situação de fato configurava-se uma fraude ao princípio constitucional que veda o terceiro mandato. Ocorre, porém, que o próprio Tribunal já havia autorizado essa conduta.
ConJur — Mas o que deveria ser feito?
Toffoli — O TSE poderia decidir que o ato se caracterizaria como fraude, mas aplicar a decisão aos casos posteriores. Assim entendo, porque o prefeito abriu mão de nove meses de mandato legítimo para disputar em um município vizinho, após a sinalização do TSE. A segurança jurídica não impõe uma jurisprudência petrificada, mas a mudança não pode atingir as pessoas que agiram da forma que ela própria indicou. Minhas convicções ou minha visão de mundo não podem ser colocadas acima da segurança jurídica. É uma questão de lealdade para com o jurisdicionado. Numa caricatura da divisão dos poderes, o Executivo cuida do presente, o Legislativo do futuro e o Judiciário do passado. Judiciário que quer cuidar do futuro ou do presente acaba tornando o passado instável.
ConJur — Para o recebimento de denúncia, bastam indícios de participação e a materialidade do crime ou é necessária a descrição e individualização da conduta dos acusados?
Toffoli — A conduta tem que ser descrita e tipificada pelo Ministério Público porque o fato de o cidadão responder a uma ação penal já modifica seu status social.
ConJur — O senhor considera que a ação criminal, por si só, já é uma pena?
Toffoli — Eu vou dar-lhe um exemplo. Eu era recém-formado e um médico formado pela USP, com 55 anos de idade, qualificado técnica e intelectualmente, recebeu uma citação por conta de uma dívida não quitada. O valor era pequeno e ele havia se esquecido de pagar. Bastava quitar a dívida e acabava o litígio. Ele me procurou indignado porque o ato judicial se referia a ele como réu. Ele repetia: “Como réu? Não cometi nenhum crime e vou pagar a dívida, como ele me chama de réu? O credor não me ligou, não recebi cobrança e agora virei réu? Não sou criminoso!”. O mais difícil foi explicar-lhe que não se lhe imputava crime algum. Mas, o termo réu, naquela citação, já lhe colocava em situação difícil, ao menos em sua visão do caso. Veja, estamos falando de uma pessoa esclarecida. O exemplo mostra como, para o senso comum, o fato de alguém ser réu já lhe impõe uma mácula. É dentro desse contexto que o juiz precisa analisar o recebimento de uma denúncia. Não é à toa que a lei processual penal passou a exigir recentemente que, antes do recebimento da denúncia pelo juiz, o acusado seja intimado para se defender. Por que se passou a exigir isso? Exatamente pelo sentido de desvalor que vem acompanhado do ato de recebimento da denúncia.
ConJur — É por isso que muitas denúncias no STF são consideradas ineptas?
Toffoli — Chegam ao Supremo muitas denúncias de natureza objetiva. Por exemplo, um prefeito assina determinado convênio, há um desvio e ele é denunciado apenas por ter assinado o convênio. Se há um desvio na execução do convênio, é necessário verificar quais foram os sujeitos responsáveis por aquele desvio. O fato de alguém ser imputado apenas pela ocupação de um cargo é um exemplo típico da famigerada responsabilidade objetiva, utilizada geralmente por regimes de força. Há uma teoria do Direito Penal que é a do domínio do fato. “Ah, o cidadão tinha o domínio do fato”. O Código Penal brasileiro adotou a necessidade de individualização das condutas. Por isso, eu considero não ser a teoria do domínio do fato adequada ao sistema penal e processual penal brasileiro. Preocupa-me a ideia da responsabilidade objetiva no Direito Penal.
ConJur — Ao julgar Mandado de Injunção e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão, cabe ao Supremo apenas declarar a mora do Poder Legislativo ou deve garantir o direito reclamado?
Toffoli — Depende do caso. É necessário fazer uma análise sob a perspectiva histórica. Logo que se promulgou a Constituição, os novos institutos foram saudados porque prestigiavam a ideia da efetividade das garantias constitucionais. O Judiciário passou a ser um ator privilegiado na concretização de garantias fundamentais e dos direitos sociais. Alguns direitos foram delegados para a legislação complementar e ordinária. Na Constituinte, quando havia um impasse, o que se fazia? Garantia-se o direito, mas deixava-se sua regulamentação para a lei. O tempo passou e a lei não veio. Chegaram, então, os mandados de injunção. No início, o Supremo Tribunal Federal agiu com muita parcimônia na concessão de eficácia ao instituto, o que considero razoável, pois não se regulamenta uma Constituição em pouco tempo. É preciso ter em conta o que Konrad Hesse chama de “possibilidades de realização do conteúdo constitucional”. Mas a jurisprudência mudou de um tempo para cá e creio que isso foi positivo para a ordem constitucional.
ConJur — O marco da mudança foi o julgamento que garantiu o direito de greve de servidores públicos?
Toffoli — Sim. Uma coisa é um direito garantido na Constituição que há cinco anos não é regulamentado. Outra é uma omissão legislativa de 20 anos. Por isso, o STF decidiu que, enquanto o Congresso não regulamentar esse direito, aplica-se aos servidores públicos a mesma regra dos trabalhadores da iniciativa privada. O posicionamento do Supremo em matéria de Mandado de Injunção e de Ação Direta por Omissão tem de ser visto sob a perspectiva histórica de tolerância com a mora do Congresso no início e de intolerância hoje. Atualmente, o Mandado de Injunção é mais efetivo.
ConJur — Por quê? Por que mudou a composição da Corte?
Toffoli — Porque o tempo passou e o Congresso continua em mora. Simples assim. Quem é que pode garantir que a composição que julgou os primeiros mandados, se ainda estivesse na Corte, não decidiria como os atuais ministros? Ela tolerou lá atrás, quando a Constituição era recente. Agora, com mais de 20 anos sob a nova Constituição, talvez fosse até mais radical do que nós somos. Os mandados de injunção, portanto, nos casos concretos, têm que ser analisados dessa forma. O Congresso teve tempo de regulamentar? O tema está em discussão? O direito vem da Constituição originária ou foi uma emenda recente? Penso que é razoável ter uma perspectiva de tolerância.
ConJur — Quando o parlamentar que responde a processo no Supremo renuncia ao mandato, seu processo deve continuar no STF ou volta para as instâncias ordinárias?
Toffoli — Já votei no sentido de que continua a correr no Supremo. Em regra, o parlamentar renuncia às vésperas do julgamento e, se decidirmos que a instância é outra, muitas vezes há o risco de prescrição. Por isso sempre defendi o foro de prerrogativa por função. Muitos que consideravam esse foro como uma forma de privilégio ou de imunidade, hoje percebem que não se trata exatamente disso.
ConJur — Por que o Supremo passou a julgar e, em alguns casos, condenar parlamentares apenas recentemente?
Toffoli — Porque antes a Constituição impedia. Era necessário ter a autorização do Congresso. A Constituição mudou. Hoje a autorização não é necessária.
ConJur — Por que o senhor defende o foro por prerrogativa de função?
Toffoli — Porque o membro de um Poder será julgado pela Corte mais autônoma e independente do país. Que influência tem um parlamentar sobre o Supremo em relação a um processo de seu interesse? Nenhum. Como, aliás, de rigor, ninguém tem.
ConJur — Além da repercussão geral e da súmula vinculante, há algum outro instrumento eficaz para garantir a imperatividade das decisões do Supremo?
Toffoli — As decisões do Supremo já são bastante respeitadas. Mesmo antes de Súmula Vinculante, ou de qualquer instrumento, o Judiciário já aplicava os precedentes. Até porque os juízes, salvo exceções que confirmam a regra, têm bom senso. O efeito positivo da Súmula Vinculante, que é pouco destacado, é que ela vincula a Administração Pública, o Estado brasileiro. Então, se ele descumpre determinada decisão sumulada, o cidadão tem um remédio imediato perante o Supremo Tribunal Federal, que é a Reclamação.
ConJur — Mas esse número de reclamações não será restrito?
Toffoli — Sim, mas será restrito exatamente graças à Súmula Vinculante. A Administração Pública, por natureza, muitas vezes faz a análise do custo-benefício, principalmente na área econômica. Em alguns momentos da vida nacional, editava-se uma norma tributária de duvidosa constitucionalidade, a despeito da ciência desse fato. Se caísse na Justiça, metade da população iria conseguir reverter e a outra metade seria lucro para o Estado. Resultado: esse expediente valeu a pena em uma situação de crise. A Súmula Vinculante impede isso. A História mostra que a lógica da área tributária e econômica de qualquer governo tem diversos momentos de choque com a da área jurídica. A área econômica é pragmática, ela faz o cálculo. Mas quando se aumenta o leque de acesso ao controle direto pelo Supremo, introduz-se maior segurança jurídica no país, maior celeridade na invalidação das normas inconstitucionais. Cria-se a necessidade de o Executivo e de o Congresso criarem leis observando com mais acuidade sua constitucionalidade.
ConJur — Já houve reclamações de que, ao ter que justificar os motivos da recusa da repercussão geral, o ministro do Supremo acaba quase enfrentando o mérito do processo. Na Suprema Corte americana, os juízes escolhem os casos sem fundamentar a recusa. Esse modelo se aplica no Brasil?
Toffoli — Não. Decisão judicial tem de ser fundamentada e não cabe ao Supremo deixar de fazer. Essa é uma bela herança da tradição jurídica portuguesa, que muitos criticam, mas que deixou um legado importante para a cultura jurídica nacional. Todos os meus votos e decisões são devidamente fundamentados. O mínimo que o juiz deve fazer é cumprir a determinação da própria Constituição. O juiz não é eleito, não tem de prestar contas, mas ele tem um dever a cumprir: tomar decisões transparentes. E a transparência está exatamente permitir o controle público e técnico dos motivos pelos quais se decidiu de determinada forma. Quando eu era advogado, uma das coisas que mais me chateava era me deparar com um despacho sem os motivos. Geralmente, vinha assim: “Ausente o fumus boni iuris e o periculum in mora. Indefiro a liminar.” Hoje, como juiz, quando aprecio uma liminar eu explico porque entendo que esses requisitos estão ausentes ou não.
ConJur — O Judiciário pode determinar que o Executivo implemente políticas públicas?
Toffoli — Essa questão foi enfrentada recentemente em um julgamento que versava sobre o direito à saúde. Decidimos que o acesso a medicamentos é um direito do cidadão e o Estado tem que fornecê-los. Mas é uma discussão delicada. O Judiciário tem de ser cuidadoso. Contudo, existem políticas públicas que a Constituição exige do Estado brasileiro e, muitas vezes, dá-se a injustificável mora estatal. O cidadão que se vê preterido pela ausência de um direito não tem outro recurso senão vir ao Judiciário. Imaginemos situações-limite. Se o Estado não construísse escolas ou implementasse políticas para a universalização do ensino básico, o Judiciário não poderia agir quando procurado pelos pais, cidadãos brasileiros, cujos filhos não têm acesso à educação? Não seria razoável. O que o Judiciário não pode é dizer de que forma a política pública deve ser efetivada na área da saúde ou na área da educação, por exemplo. Não pode influir no desenho da política pública. Mas pode decidir que o Estado é obrigado a dar ao cidadão acesso a essas garantias constitucionais. Talvez mais relevante do que essa discussão seria o debate em torno do uso que se tem feito dos termos de ajustamento de conduta, os TACs. A sociedade civil precisa colocar esse problema na ordem do dia. Esses TACs, muitas vezes, são impostos pelo Ministério Público aos quase seis mil municípios brasileiros, tendo por efeito prático a substituição dos agentes do Parquet ao mandatário eleito pelo povo. Dá-se a substituição da vontade democrática do eleitor pela visão de mundo dos membros do MP, que, por meio dos TACs, dizem como, quando e de que forma as políticas públicas devem ser executadas. Esse protagonismo que o MP, nas instâncias municipais, vem exercendo deve-se também à ausência de obrigatoriedade constitucional de uma advocacia pública de Estado nos municípios.
ConJur — A penhora de bens pelo fisco sem qualquer manifestação da autoridade judiciária é uma constrição legítima à luz da Constituição?
Toffoli — Eu penso que é possível a Administração Pública fazer, por exemplo, uma pesquisa direta em cartórios e determinar a constrição. Mas é evidente que isso não pressupõe a ausência do devido processo legal. É necessário que haja um devido processo legal administrativo, no qual o contribuinte tenha amplo direito de defesa. Se não convencer a Administração, ele sempre poderá buscar a última palavra no Poder Judiciário. Hoje, todos os casos de constrição, necessariamente, têm de ser determinados pela Justiça. Com esse quadro, muitas vezes um banco tem capacidade maior de constrição do que o Fisco. Não se pode pressupor que a Administração Pública vai abusar sempre. Nem é razoável imaginar que ela vai abusar a maioria das vezes.
ConJur — Mas pode abusar muitas vezes, não?
Toffoli — É obvio que não somos ingênuos a ponto de achar que Administração Pública não é capaz de abuso. O Estado erra. O Estado, às vezes, persegue. No caso de um gestor mal intencionado, pode haver perseguição e aí cabe ao lesado se socorrer no Judiciário. Mas é necessário dar mais força à solução dos litígios na esfera administrativa. O Supremo enfrentará em breve a questão da prévia análise administrativa dos requerimentos previdenciários. O cidadão que pleiteia algum benefício pode acionar a Justiça sem, antes, ter litigado com a Administração? Lembre-se que falamos de milhões de ações. Por que o Estado mantém uma estrutura grande como a da Previdência, os postos do INSS, se o cidadão vem imediatamente para o Judiciário discutir seu direito? Nessa discussão entra a lógica perversa do mercado de trabalho da advocacia.
ConJur — Que lógica perversa?
Toffoli — A ideia de que advogado só tem direito de receber honorários se ganhar o processo na Justiça. Quando ele ganha na esfera administrativa, a leitura que se faz é de que a parte já tinha o direito. Então, não precisa pagar honorários. É uma visão muito equivocada. Porque o advogado que ganha administrativamente também tem direito de receber por seu trabalho. Há um mercado de trabalho ainda muito pouco explorado na esfera administrativa no Brasil. E, na verdade, a solução mais rápida justifica uma melhor remuneração do que a mais demorada.