THIAGO DE MELLO E O FANTASMA DA LIBERDADE

Por Ribamar Bessa:

Fica proibido o uso da palavra liberdade  / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio, / e a sua morada será sempre / o coração do homem. (Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem)

Thiago de Mello completa 90 anos nesta quarta-feira  (30/03). Tinha 39 anos quando deu recital de poesia no Teatro da Divina Providência. Nesse dia, pouco antes de lá entrar, tomou tacacá na banca da dona Maria na Rua Ramos Ferreira, ali em frente à Academia Amazonense de Letras, acompanhado do poeta Farias de Carvalho, que se empanturrava com croquete, banana frita e tapioca coberta de coco ralado. Foi aí que o vi pela primeira vez. Já no palco, vestido de branco, declamou “Os Estatutos do Homem”, traduzido depois para 30 idiomas, com aquela auréola de quem havia sido recentemente preso no Hotel Glória, ao lado de Antônio Callado.

Ah, por sinal foi Ana Arruda Callado, com quem eu trabalhava no jornal O SOL, no Rio, que dois anos depois, em 1967, me apresentou ao Thiago. Ele estava semiclandestino num casarão em Botafogo, residência do seu amigo Luis Carlos Barreto, o Barretão. Demonstrou sua alegria em encontrar um jovem conterrâneo de Aparecida, bairro que sediava uma fábrica de cerveja, na Rua Dr. Aprígio.

Cerveja amazonense? Thiago, que é um narrador sedutor, contou que quando adido cultural do Brasil no Chile, no governo Jango, convidou para jantar um empresário da Associação Comercial do Amazonas (ACA), seu amigo de infância, a quem não via há séculos e que viera a Santiago para um Congresso Latino-americano de Lojistas. Cozinheiro de mão cheia, preparou rabada com agrião, mas estava atormentado por dúvida atroz:

– Abro ou não abro o meu Chateau Lafite Rothschild?

Era um vinho de safra especial do ano do finado Putemerde, com uva colhida em setembro, só restavam três garrafas no mundo que valiam uma fortuna: uma estava com Rockfeller, nos Estados Unidos, a outra na adega da Baronesa de Massy, no Principado do Mônaco, e a última adquirida em um leilão da Sotheby’s por Pablo Neruda, que o presenteou recomendando: “Hermano, ese es para que lo abras en una ocasión muy especial”.  

– Abro ou não abro? – se indagava Thiago, fazendo suspense em pausa prolongada de sua narrativa.

Abriu. Foi generoso. Enquanto o vinho respirava, ele ritualizou. Falou do valor da amizade, lembrou a infância comum quando ambos brincavam de manjalé e empinavam papagaio na Rua José Paranaguá, explicou que aquele era um vinho raro, redondo e suculento, cor rubi intenso com toque leve de violeta, aroma de damasco. Acariciou a rolha, serviu, cheirou, degustou, brindou, sorveu um pequeno gole e aguardou a reação, olhando nos olhos do amigo, que esvaziou a taça sofregamente de uma só talagada – gut, gut, gut, gut.

– E aí? – perguntou o poeta, estarrecido com tamanha rapidez.  

– É. Bonzinho! Mas eu ainda prefiro uma XPTO bem geladinha.

Era a cerveja amazonense, a famosa XPTO, que estava para Manaus como o Chateau Lafite está para a região do Médoc, na França. De qualquer forma, Thiago matou as saudades.

Falando em saudade, ela foi cantada muitas vezes por Thiago de volta ao Chile, final de 1969, agora como exilado, quando recebia em sua casa amigos chilenos a quem ensinava: “Oi leva eu, minha saudade, eu também quero ir, minha saudade”. Dirigia o coro como um maestro, tendo ao violão seu filho, o saudoso Manduca. Isso aconteceu muitas vezes no apartamento da filha de Salvador Allende, Isabel, hoje senadora por Atacama, que o emprestou a Thiago quando saiu de férias. Estávamos na maior pindaíba.

Por falar nela, a pindaíba, foi com ela que ficamos no apartamento, eu e o Manduca, num fim de semana em que Thiago teve de ir a Valparaíso com a Lurdinha, grávida da Isabel. Não havia um grão de arroz na dispensa. Quem nos salvou foi o cofrinho de Gonzalo, neto de Allende. Que Deus nos perdoe, mas Manduca e eu assaltamos o porquinho com um arame e tiramos as moedas para comprar um pacote de macarrão que matou nossa fome de nordestinos famélicos dos romances de Graciliano e José Lins do Rego.

De José Lins, Thiago tem uma coleção de histórias, algumas delas contadas em longo depoimento no documentário imperdível de Vladimir Carvalho “O Engenho de Zé Lins”. O poeta, que serviu de enfermeiro, contou o sofrimento do amigo dileto no hospital, a hemorragia, a interceptação que fazia dos jornais quando o Flamengo perdia para evitar sofrimento daquele torcedor doente. Um capítulo para os trotes telefônicos que davam singelo, mas intenso prazer ao escritor paraibano.

Candura residia também na brincadeirinha inocente que não está contada no documentário, mas que Thiago gosta de narrar. Quando os dois saíam de braços dados pelo calçadão de Copacabana e passava uma mulher bonita, mantinham o seguinte diálogo em voz alta para ela ouvir:

– De Mello, olha ela aí!

– Você disse que ela não vinha!

– Você falou sem pensar.

– Olha ela aí, Valdemar!

– Está botando pra quebrar.

E morriam de rir como meninos engenhosos.

Já contei nesse espaço muitas histórias vividas com Thiago, amigo de Violeta Parra, Allende, Benedetti, Mercedes Sosa, Chabuca Granda, Neruda e tantos outros. Aliás, Neruda ao ouvir as histórias de Thiago lhe dizia algo extensivo aos narradores amazonenses:

Hermano, tu te pierdes por las ramas.

Quem se perdeu “por las ramas” foi Buñuel no seu filme “O fantasma da liberdade”, que transgride as regras canônicas da narrativa e apresenta as sequências encadeando-as por encontros fortuitos, sem relação aparente entre si, o elo entre elas é, às vezes, uma mera frase ou um personagem, que salta de uma sequência e emenda na outra.

Quem, eu? Perdido por las ramas? Égua, eu, hein! Se hoje tivesse em minha adega uma garrafa da extinta XPTO, mais por razões afetivas do que pela qualidade duvidosa da cerveja, ai sim me perderia por todas las ramas, abrindo-a sem qualquer hesitação para beber com meu querido amigo, Thiago de Mello, amante e escravo da liberdade, a quem desejo a longevidade de Niemeyer. Zicke, Zacke, Zicke, Zacke! Hoi, Hoi, Hoi! Saravá, poeta!