TEMER NO RODA VIVA: ENTREVISTÁ-LO-EI?

Por Ribamar Bessa:

A entrevista do presidente Michel Temer no Roda Viva da TV Cultura, segunda-feira (14), tem de ser exibida nos cursos de jornalismo para familiarizar os futuros profissionais com o gênero entrevista e ensinar-lhes o que não deve fazer um entrevistador. Durante hora e meia, seis jornalistas de projeção nacional inverteram a conhecida lição de Millôr Fernandes para quem “jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Sem qualquer senso critico, suas perguntas transformaram o programa numa quitanda para Temer vender seu peixe. Tudo farsa, encenação.

A falsidade desse tipo de entrevista já foi ironizada num texto discutido em sala de aula com meus alunos dos cursos de jornalismo da UERJ e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seu autor, Nelson Rodrigues, conta que no “dia excepcional e crudelíssimo” do assassinato de Kennedy, com o mundo pegando fogo, uma repórter estagiária do Jornal do Brasil pediu para entrevistá-lo, ele preparou frase de impacto sobre o crime político, mas ela queria saber sua opinião sobre… o jogo Vasco x Botafogo.

– “Humilhado e ofendido, pensei no dia em que nós jornalistas estaremos sob as ordens das estagiárias” – suspira Nelson, que era tricolor. Pois bem, esse dia chegou. Pior: quem está dando ordens não são inexperientes estagiárias, mas a temerosa voz do dono. Quem duvidar, confira no Roda Viva as perguntas dos coleguinhas que sepultaram a informação em detrimento de futilidades. O país caindo aos pedaços e eles sequer mencionaram a palavra “crise”. A estagiária, pelo menos, estava interessada no campeonato carioca – um evento da vida pública e não da privada focada por  Ricardo Noblat do Globo que perguntou:

– Presidente, como foi que o senhor se apaixonou por dona Marcela? Como foi essa descoberta?

Por amor

Temer era uma pose só. Fez caras e bocas. Com a ponta da língua esticada pressionou a bochecha, girou os dedões de proctologista e contou para seis jornalistas embevecidos que conheceu Marcela há quinze anos, em campanha para deputado federal, num restaurante do tio dela, em Paulínia. Noblat enxugou uma lágrima furtiva, mas mesmo assim, com aquela coragem que o caracteriza, apertou o entrevistado em busca de apuração rigorosa e exaustiva de fato tão relevante para o Brasil, que ansiava por ela:

– Sim, mas o senhor passou quanto tempo até se declarar? – insistiu.

Temer contou que só foi possível retomar o contacto com Marcela porque ela, não resistindo ao seu charme, parabenizou-o pela vitória eleitoral em carta enviada não para o endereço do PMDB, como era de praxe, mas para o escritório do seu amigo Gaudêncio Torquato, que serviu de cupido e lhe entregou a missiva com o telefone dela. Sete meses depois estavam casados. A novela “Por Amor” pode, enfim, ser reescrita, graças a Noblat, que certamente entrevistará Marcela para checar assunto tão transcendental, como manda o bom jornalismo. O Brasil aguarda ansioso.

Nunca olhei o Noblat como ele olha o Temer, mas admirava o autor do livro “A Arte de Fazer um Jornal Diário”, no qual afirma que um jornalista não pode ficar para trás quando seus leitores avançam. Ele ficou. Sua inspiração – parece – são os antigos colunistas sociais de Manaus, entre eles Little Box, Gil, Ana Maria blá-blá-blá e Nogar tudo-vê-tudo-informa. No final, o âncora Augusto Nunes anunciou que Willian Corrêa, diretor de jornalismo da TV Cultura, estava com cara de quem queria fazer uma pergunta dissonante. Passou a bola ao colega:

“Presidente, fiquei sabendo que o senhor é gente como a gente, que quando criança pediu a seu pai um piano, mas ele lhe deu uma máquina de escrever. Perdemos um grande pianista, mas ganhamos um grande escritor. E um passarinho me contou que o senhor está escrevendo um romance. Adianta o tema para nós, vai” – suplica o intrépido Willian, espiritualmente agachado. A porra do passarinho podia lhe piar que o desemprego está chegando a 12% e que o Brasil está virando uma panela de pressão prestes a explodir. Mas o passarinho do Willian não é ave de mau agouro.

Grandes figuras

Vaidoso, patético, com pose de estadista de Paulínia, Temer enfrentou a dissonância com galhardia. Relatou que aos 10 anos obteve seu diploma de datilógrafo. Que morou até os quatro anos numa chácara no interior paulista e que recordava de tudo. Que seu romance seria autobiográfico como o “Bom Dia, Tristeza” de Françoise Sagan. Que todo romance faz ficção da vida do autor. Que Saramago contou “uma coisa curiosa” ao afirmar que ele não era criador dos seus personagens, mas os personagens é que o criaram. Só faltou citar  Pollyana.

Mas quem se superou mesmo foi Eliane Cantanhêde da Globo News e do Estadão. No vídeo de sete minutos que circulou nas redes com cenas depois da entrevista, ainda no Palácio da Alvorada, ela avaliou, quase de cócoras, que Temer “foi muito bem, muito equilibrado e muito afirmativo, não recusou nenhuma pergunta“. E sussurrou para Willian Correa em tom de segredo:

Ele está escrevendo um romance. E olha, cá pra nós, aqui baixinho, que ninguém nos ouça: de romance o presidente entende, hein?

Willian Corrêa qualificou essa edição especial comemorativa dos 30 anos do “Roda Viva” como um encontro de “grandes figuras perguntando e uma grande figura respondendo”. Sem vergonha e sem timidez pudibunda, ele se incluiu entre os “grandes”. Só faltou o Merval Pereira. O resultado, é claro, não podia ser outro: perguntinhas e respostinhas.

Os demais tópicos abordados foram o elogio ao senador Romero Jucá envolvido na Lava-Jato, citações ao próprio Temer nas delações premiadas, eventual prisão do Lula, reformas trabalhista, da previdência e do ensino médio, a anistia ao Caixa 2. Visto assim parece que tinha tutano naquele osso. Não tinha. Temer não era a favor, nem contra, muito pelo contrário. Confirmou a pedra cantada há mais de meio século por Nelson Rodrigues:

–  “O entrevistado não diz uma palavra do que pensa ou sente. O que vale é o cinismo gigantesco“.

Os entrevistadores, em vez de contestar, se curvaram diante de afirmações vagas, evasivas e supersimplificadas. A única verdade dita por Temer foi após a gravação, quando ele agradeceu diante das câmeras aos seis entrevistadores e à TV Cultura:

“Eu cumprimento vocês por mais essa propaganda”.

As gargalhadas indecorosas dos jornalistas cúmplices confirmaram: aquilo não era jornalismo nem aqui nem na China. Era armazém de secos e molhados. Pura propaganda do governo, com elogios e bajulação, confundindo o respeito devido a qualquer presidente com a subserviência que se deve evitar, negadora da relativa independência almejada por todo bom jornalista.

Quem entrevista representa a audiência diante do entrevistado, que deve ser apertado e questionado para extrair dele informações de interesse público. Ocorreu o contrário. Os seis colegas inverteram os papéis e representaram Temer diante do telespectador, ocultando o que devia ser mostrado, apelando para a emoção barata e nos tratando como se fôssemos lesos. Perdi o respeito por eles. Confesso que fiquei morto de vergonha do armazém de secos e molhados, do jaraqui vendido naquela vendinha vagabunda. Até para puxar saco se exige um mínimo de pudor.