TEMER E NÓS: A ONÇA E O JACARÉ

Por Ribamar Bessa:

Conta a tradição oral que quando a onça ataca o jacaré, ele permanece quieto e impassível enquanto ela começa a devorá-lo pelo rabo. Ouvi essa história na infância sempre acompanhada de comentários indagando por que um réptil tão corajoso, com um focinho avantajado, que acumula histórias de luta, se entrega covardemente à voracidade de um felino, que tem um volume e um peso muito menor?

Essa narrativa parece fantástica, mas dezenas de estudiosos da Amazônia a confirmam, entre eles o cônego Bernardino de Souza, que testemunhou o fato pessoalmente e achou “incrível o jacaré deixar-se agarrar pela onça e morrer sem oferecer a menor resistência“, conforme registrou em “Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas” (1873).

Os cabocos sabem disso, mas não encontram explicação, da mesma forma que os naturalistas ingleses Henry Bates e Alfred Wallace, que viveram vários anos na Amazônia em meados do séc. XIX. Wallace, que discutiu com seu amigo Darwin a teoria da evolução das espécies, observou no rio Solimões “uma onça devorar, vivo ainda, um enorme jacaré do qual ia arrancando e comendo pedaços da cauda. Enquanto estava a devorá-lo, o jacaré permanecia perfeitamente imóvel” – escreve ele em “Viagens pelos rios Amazonas e Negro” (1853).

Parece uma metáfora do que está acontecendo no Brasil. O jacaré somos nós. A onça é o poder. São muitas onças rugindo de forma ameaçadora, alojadas nos quatro poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário e Mídia, onde são agora hegemônicas. Por que o jacaré não se defende, não luta? Essa é a pergunta que fazem alguns cientistas sociais intrigados com a inércia do movimento popular diante da corrupção do governo Temer e dos ataques para eliminar as conquistas sociais, tornando a vida dos brasileiros mais insegura e angustiada.

Carne de jacaré

A onça, predadora, cada vez mais ousada e confiante na impunidade, ataca agora com a reforma da Previdência para acabar, na prática, com vários direitos, entre eles o da aposentadoria. “Precisamos cortar na própria carne” – justifica o ministro da Fazenda Henrique Meirelles. A carne que ele quer cortar é a do jacaré para alimentar as onças vorazes, subservientes ao sistema financeiro.

A onça gasta a metade do orçamento do governo federal no pagamento de juros e refinanciamento da dívida pública, que já ultrapassa os 4 trilhões. É uma caixa preta que nunca foi auditada de forma séria e transparente. Os especialistas garantem que a revisão das normas de pagamento permitiria que o Estado brasileiro não sacrificasse a população, podendo investir em saúde, educação, segurança social. Mas a onça avança mesmo é sobre o rabo do jacaré que não diz nem “ui”.

Uma das onças, gorda e enxundiosa – o Poder Judiciário – vai receber em 2017, de acordo com a proposta orçamentária R$ 44,2 bilhões para despesas de pessoal, encargos sociais, benefícios e pensões de pessoal, construção e reformas de prédios. Créditos adicionais de R$ 1,1 bilhão foram aprovados pelo Conselho Nacional de Justiça para despesas não programadas ou insuficientemente dotadas do Poder Judiciário. Prevê ainda reserva de R$ 23,4 milhões para a criação de cargos e funções. Abocanha um naco do rabo do jacaré, que permanece calado, sequer esperneia.

A outra onça, a do Executivo, está quase toda na lista do procurador-geral Rodrigo Janot, que enviou ao Supremo Tribunal Federal o pedido de abertura de 83 inquéritos para investigar a corrupção praticada por políticos com foro privilegiado, entre eles vários ministros. Na lista estão também a onça do Legislativo, com inúmeros deputados e senadores. Foi encaminhado ainda para outras instâncias do Judiciário o pedido para investigar mais 211 pessoas sem foro privilegiado: vereadores, deputados estaduais, prefeitos e governadores.  É a prova de outro naco arrancado do rabo do jacaré, que nem sequer grita em protesto.

Onça voraz

O poder sempre foi compartilhado entre onças. Sempre. Mas durante algum tempo vigorou um pacto de não agressão ao jacaré. Foi aí que um grupo – digamos assim – de “apostadores”, inconformado por haver perdido as eleições, tomou de assalto o poder, ao som das panelas, do grasnido estridente do pato da FIESP e de um esgoto verde enferrujado da TV Globo por onde escoava a grana da corrupção, que era exibido todas as noites, sempre, no Jornal Nacional. Bastava a compra de um simples pedalinho para o esgoto televisivo derramar rios de dinheiro com ruídos assustadores.

Depois de abocanhar o poder, o grupo rompeu o pacto de não agressão e a onça passou a devorar o jacaré pela cauda. O senador Jucá propôs estancar a sangria da Operação Lava-Jato. O jacaré ficou quieto. O ex-presidente do Senado e o atual figuram na lista dos propineiros, assim como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia e muitos parlamentares que vão votar a reforma da Previdência, todos eles com polpudos salários e aposentadoria garantida. O jacaré imóvel. O ministro do STF, Gilmar Mendes, garante que corruptos eram os adversários políticos que precisavam ser apeados do poder. Os cupinchas, que assaltaram a nação, são apenas “apostadores”. O jacaré nem geme de dor.

A pergunta que não quer calar foi feita pelo cônego Bernardino: “Por que o jacaré, feroz e terrível para com o homem, é covarde e pusilânime em relação à onça?”.

Que o pato da FIESP fique calado, é compreensível. Afinal, seu presidente, Paulo Skaf, onça pintada (PMDB vixe vixe), recebeu 6 milhões, segundo delações da Odebrecht. Ele não protestava contra a corrupção, apenas manobrava para afastar do poder quem havia sido eleita pelo voto popular. Mas cadê aqueles paneleiros, muitos deles sinceros, tão combativos e ferozes contra a corrupção, e agora enrabados, humilhados e acovardados  como o jacaré?

Cadê o esgoto verde enferrujado do Jornal Nacional que manifestava indignação, alimentando os ruídos das panelas? Mas, o que é mais grave, por que nós, que não batíamos panelas por perceber a manobra golpista, agora estamos calados diante de tantos desmandos? O que nos impede de bater panelas? O que nos paralisa? Por que deixamos, passíveis, que comam a nossa cauda?

Alguns amigos paraenses, a terra dos jacarés, esboçaram uma reação promovendo o escracho contra a dilapidação do patrimônio público. Criaram no facebook um grupo chamado M.E.R.D.A. – Movimento de Erradicação da Roubalheiras das Autoridades. O mais importante é que em 125 cidades, incluindo 25 capitais, no dia 15 de março, o jacaré começou a arreganhar os dentes, o que foi relativizado pelos principais telejornais..

A passividade agora está com os dias contados? Até os índios Guarani-Kaiowá protestaram, fechando a rodovia estadual na altura da Aldeia de Amambai (MS), da mesma forma que os Kaingang da Terra Indígena Campo do Meio (RS). Embora o esgoto enferrujado tenha tentado minimizar manifestações de protestos contra a reforma da Previdência, elas uniram muitos ex-paneleiros, que estavam a favor do “impeachment” de Dilma e os anti-paneleiros que eram contra o “golpe”. Sem o respeito mútuo entre os dois grupos, a onça vai jantar nosso rabo. O jacaré começa a reagir?

P.S. – Para três irmãs minhas que aniversariam esse mês: Ângela (8), Teca (15) e Preta (19), as três contra a reforma da Previdência e a favor da reforma da Presidência. Babá, o La Fontaine Baré, tem a quem puxar.