Por Ribamar Bessa:
A escola está preparada para lidar com alunos portadores de deficiência? Com os que professam diferentes religiões? Com os que falam uma língua de migração, uma língua indígena ou que dizem em português “nós pega o peixe” fora da norma padrão? Professores recebem nos cursos de pedagogia e de licenciatura formação para lidar com a diversidade sociocultural, religiosa e linguística e para incluir na sala de aula alunos tradicionalmente discriminados? Quem são esses professores? Qual o seu perfil? Quais dificuldades encontram para combater o preconceito e a intolerância? Quais as conquistas e os avanços já obtidos nesse campo e o que o presidente interino do Brasil propõe como política educacional?
Essas e outras perguntas foram feitas nesta semana num seminário realizado na Universidade de Quebec entre professores e pesquisadores brasileiros e canadenses, comparando as práticas educativas nos dois países. Em outra oportunidade, abordaremos questões pontuais discutidas no evento, que demonstrou preocupação com a situação política no Brasil e com a continuidade de políticas de inclusão. Agora, publicamos aqui uma carta aberta à comunidade internacional assinada pelos participantes, que foi publicada em francês em jornais canadenses.
CARTA ABERTA À COMUNIDADE INTERNACIONAL
Trois-Rivières, Canadá, 26 de maio de 2016
Nós, participantes do Seminário comparativo Brasil-Quebéc, reunidos na Université du Québec à Trois-Rivières de 24 a 26 de maio de 2016, denunciamos a manobra parlamentar que provocou a destituição da presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Juntamente com outros pesquisadores e educadores, nós conclamamos a sociedade internacional a questionar a legalidade e a legitimidade do governo interino, bem como a idoneidade moral e política das suas decisões, que colocam em risco a democracia e a soberania brasileira.
O Seminário intitulado “Por uma sociedade inclusiva: Formação de educadores no contexto da diversidade” é fruto de treze anos de cooperação científica entre pesquisadores de universidades brasileiras e canadenses, que desenvolvem estudos e debates para incorporar na vida social grupos historicamente excluídos, promovendo políticas públicas interculturais e inclusivas.
A diversidade etnocultural, produzida por processos de colonização, coloca desafios de inclusão democrática nas sociedades pluralistas. A educação formal e informal, considerando as suas funções educativas e socializadoras, desempenham um papel central para dar respostas a essa questão. Há um amplo consenso internacional quanto à importância de se formar atores educacionais para o trabalho em contextos de diversidade. Durante este seminário, discutimos práticas, projetos e políticas que visam incluir grupos “minoritários” na educação e na formação de professores e de outros atores sociais.
A participação do Brasil nos esforços internacionais para promover uma sociedade justa, solidária e aberta às diferenças socioculturais, encontra-se ameaçada pela agenda política do governo interino instituído no Brasil a partir 12 de maio do corrente ano, como resultado do que foi denominado de “golpe de Estado”, conforme termo usado por analistas políticos na imprensa internacional. O processo do impeachment encaminhado sucessivamente na Câmara de Deputados em 17 de abril e, no Senado Federal, em 11 de maio do corrente ano, determinou o afastamento da Presidente Dilma Rousseff por até 180 dias. Durante este período, o Senado Federal julgará o mérito das acusações alegadas para justificar o impedimento do mandato presidencial.
Embora o rito jurídico tenha sido formalmente seguido nestes processos deliberativos do Congresso Nacional, vários fatores questionam a legalidade, a legitimidade e a moralidade deste processo de destituição da presidenta eleita em 2014 por 54 milhões de cidadãos brasileiros. Indicativo da ilegalidade foi, de um lado, a condução do impeachment pelo Deputado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, afastado por ser réu junto ao Supremo Tribunal Federal, formalmente acusado de corrupção e por abuso de poder. Por outro lado, a ilegitimidade depreende-se da baixíssima representatividade da Câmara dos Deputados, refém de poderosos grupos de lobbies.
O governo interino, empossado em 12 de maio passado, nomeou ministros nada representativos das identidades e dos interesses do povo brasileiro. A composição deste governo provisório fere a equidade e a representação de diversos grupos etnoculturais do Brasil, da mesma forma que a paridade de gênero. Foi composto apenas de ministros homens, “brancos” e ricos, sete dos quais estão implicados em processos de corrupção.
Ao promover uma reforma do Estado Brasileiro, que implica mudanças dificilmente reversíveis de políticas públicas, ameaça direitos políticos e sociais democráticos construídos ao longo dos últimos 13 anos pelos governos Lula e Rousseff. Compromete também a soberania nacional, especialmente com a privatização de empresas públicas. Enfim, o processo de impeachment recebeu apoio midiático e financeiro de grupos econômicos nacionais e transnacionais, que vêm dando suporte à operação articulada de destituição da presidente Dilma e de implantação de políticas antidemocráticas.
Por estes motivos e porque valorizamos o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas inclusivas agora ameaçadas, questionamos a legalidade, a legitimidade e a moralidade do governo interino assumido e exercido no Brasil pelo vice-presidente Michel Temer. Esperamos que a comunidade internacional possa contribuir para amplificar a voz dos milhões de brasileiros que lutam pelo restabelecimento da democracia.
P.S. – Na abertura do Seminário foram lançados vários livros, entre os quais O RIO BABEL – A HISTÓRIA DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA, 2ª edição. EDUERJ.