Apesar de termos sido coevos (que palavra horrível!) na imprensa carioca, só fui conhecer pessoalmente o jornalista mineiro Tarcísio Lage em 1969, em Santiago do Chile, ao compartilharmos o quarto numa pensão na Calle Grajales – uma casona antiga de três andares e 40 janelas que alojava brasileiros exilados da ditadura. Um dia, ao entrar no refeitório, vejo Tarcísio lendo em voz alta, numa roda de hóspedes, uma carta de minha mãe, que eu deixara aberta numa gaveta em nosso quarto. Segurava em sua mão o envelope com bordas verde-amarelas. Era a prova do crime. Protestei indignado:
– Sacanagem! Isso é invasão de privacidade.
Ele, então, exibiu a carta. Era de sua mãe, dona Feliciana, enviada de Abaeté (MG). Ela continha as mesmas fórmulas epistolares da dona Elisa, lá de Manaus (AM): “Meu filho, diariamente rezo a Deus por ti, pedindo que te abençoe, que ninguém te condene por ser ‘aquilo’ e coisa e tal”. Esse “aquilo” era o codinome de “comunista”, que elas sequer ousavam pronunciar, um fantasma usado ainda hoje para assombrar os incautos e reprimir os que fazem a opção preferencial pelos pobres. Católicas praticantes, mães mais praticantes ainda, uma em Minas, a outra no Amazonas, tinham preocupações similares nas palavras e na letra desenhada de caderno de caligrafia. Parece até que haviam combinado. Foi aí que descobrimos que éramos filhos da mesma mãe de úteros e nomes diferentes. Éramos irmãos.
Fotos vivas
Tenho 2.383 causos que me foram relatados oralmente pelo mano Tarcísio, um contador de histórias performático e irreverente, que domina a “literatura da voz”, capaz de fotografar nuvens em permanente movimento. Muitas delas enfeitadas em linguagem ficcional aparecem agora escritas no romance Jerusalém Destruída, que será relançado pela Editora Batel nesta terça (25), no salão do restaurante Lamas, no Flamengo (RJ) numa nova versão de Os muros de Jerusalém. Ele traz recordações da infância em Eteaba, uma Abaeté às avessas, na qual dona Lalá, personagem central, é o alter ego de tantas Felicianas, Elisas e outras mães brasileiras cercadas por muros, mas parideiras de uma irmandade que busca a justiça social.
O romance, que dinamita os muros da Jerusalém existente dentro de cada um de nós, recupera lembranças da infância, do jornalismo, da militância política e do exílio, com o uso da fotografia como metáfora das recordações.
– “Nós, fotógrafos” – diz Cartier-Bresson – “lidamos com coisas que estão continuamente desaparecendo e, uma vez desaparecidas, não há nenhum esforço sobre a terra que possa fazê-las voltar […] Para os fotógrafos, o que passou, passou para sempre”.
Para o romancista, não. O que passou não fica congelado na foto, é reatualizado. O romance de Tarcísio Lage ressuscita e recria o que era, continua sendo ou desejava ser, como no caso da beijoqueira da Escola Normal, que pula da foto de formatura onde estava imobilizada, se despe de sua farda e, nuazinha, já como personagem, derruba os muros de sua Jerusalém para fazer aquilo que sonhava no momento em que foi fotografada.
Retratos antigos se tornam personagens atrevidos que se mexem, ganham vida, falam, se libertam das molduras e dos preconceitos e interferem no desenrolar da trama. Mal-educadas, indiscretas e pornográficas, as fotos controlam as lembranças fuçando na lata de lixo da memória. A foto restitui aquilo que o tempo e a distância devoraram, numa linguagem manejada com maestria, humor, ironia e até com compaixão quase envergonhada, disfarçada nas entrelinhas do romance devido ao pudor do autor.
No Chile
Merecem ser lembradas histórias que ficaram de fora da Jerusalém Destruída, ocorridas no Chile, Inglaterra, Suíça e Holanda, países nos quais o nosso romancista residiu. Embora já autodeclarado anarquista e ateu, para satisfazer dona Feliciana, ele se casou com a paraibana Iveline Lucena na igreja de uma favela de Santiago – uma “población callampa” – para onde foi de ônibus. Antes de descer, avistou seu padrinho de casamento, que de paletó e gravata, todo formal, descia de um carro perto da igreja. Era o ex-deputado cassado pela ditadura, Salvador Lossaco, então alto funcionário da DESAL – instituição voltada para o desenvolvimento da América Latina. Tarcísio deu um berro:
– Losacco, eu vou ENTRAR aqui. AQUI, olha!!!
Dizia isso com a mão pra fora da janela, batendo escandalosamente na lataria do ônibus e apontando as letras garrafais com o nome BH – Busetas Heredianas S.A – empresa com sede em Costa Rica que usava essa denominação para “bus”, além de ser um sobrenome no mundo hispanoamericano. Todo mundo olhou. Menos Losacco, que morria de vergonha quando Tarcísio fazia escândalos até em seu trabalho na Faculdade Latino Americana de Ciência Sociais (FLACSO).
Lá na FLACSO, o nosso romancista, que organizava o mais completo fichário bibliográfico de ciências sociais sob a coordenação de seu chefe, Deodato Rivera, teve um arranca-rabo com outro exilado ilustre, que não gostou de vê-lo debochar da copiosa obra do polonês Amos Rapoport. Tratava-se do ex-presidente da UNE, José Serra, já então defensor da ordem vigente, que o ofendeu:
– Seu careca maoísta, sectário e fanático. Você faz parte da esquerda pueril.
– Vai-te pra pqp, seu careca reformista – respondeu Tarcísio, que é bom de rima e partiu pra cima. Só não se engalfinharam por interferência de outro exilado ilustre, o FHC, que nem sonhava em ser presidente da República, agora tratado por Moro como um “aliado”, na troca de mensagens reveladas por “The Intercept”.
Vozes de Londres
O jornalista careca, “el periodista pilucho”, teve sua competência reconhecida ao ser convidado para trabalhar no Serviço Brasileiro da Rádio BBC de Londres. Nas primeiras semanas, seu inglês não ia muito além do “the book is on the table”. Na fila do restaurante da BBC, quando lhe pediam para escolher entre três ou quatro opções de comida, apontava para a bandeja de quem lhe antecedia e dizia: “the same”. Comeu “the same” até o dia em que o prato escolhido foi frango, que ele não come de jeito nenhum por razões afetivas. Aprendeu inglês rapidinho.
Foi aí que a BBC em português programou entrevistá-lo. Tarcísio avisou sua mãe para sintonizar a rádio no horário e data previstos, recomendando que fosse discreta. Dona Feliciana, orgulhosa, não se conteve e, depois da missa das sete, foi à sacristia informar ao vigário da paróquia, que alertou o farmacêutico, que preveniu o presidente da Câmara Municipal, que notificou o prefeito. Um carro de som percorreu a cidade, convocando a população para a Praça Frei Mário, onde o serviço de alto-falante iria retransmitir a voz do primeiro abaeteense a falar de Londres para o mundo. No dia D, na hora H, os então 12.532 habitantes de Abaeté lotaram a praça, ansiosos, quando veio a primeira pergunta:
BBC – Tarcísio, os nossos ouvintes querem conhecer os problemas de um brasileiro que vive em Londres. Você teve dificuldades com a língua?
Tarcísio – Nenhuma. Afinal, eu fui aluno de inglês do professor Nelsinho na Escola Normal Nossa Senhora de Fátima, em Abaeté. Ele me ensinou tudo.
O povo ululava. O professor Nelson Cunha, conhecido como Almirante Trafalgar, já velhinho e ali presente, foi ovacionado. Era um reconhecimento público a ele que, modestamente, só ensinara good night, good morning, thank you e a frase “I asked my mother, what will I be”, do filme “O homem que sabia demais” de Hitchcock, que Abaeté inteira assistira no Polytheama, encantada com Doris Day cantando “Que será, será”.
O “teacher” chorou copiosamente e enviou carta ao seu ex-aluno, em Londres, confessando que aquele fora o dia mais feliz de sua vida e que sua existência no planeta estava justificada. Agora podia morrer ciente do dever cumprido.
BBC – Nossos ouvintes querem saber suas impressões sobre o rio Tâmisa.
Tarcísio – Rio Tâmisa? Que rio? Eu rio. Com todo respeito não passa de um reles riacho. Rio é o Marmelada onde aprendi a nadar e a pescar.
Os uivos da plebe desceram a av. Dr. Guido, navegaram pelo rio Marmelada e ecoaram em Dores do Indaiá, Biquinhas, Morada Nova e Santo Antônio dos Tiros. O delírio coletivo foi maior do que em qualquer conquista da Copa do Mundo.
BBC – O que você sentiu quando viu o estilo gótico da majestosa Abadia de Westminster, onde desde o séc. XI foram coroados todos os monarcas britânicos?
Tarcísio – É. É imponente, me faz lembrar a Igreja Matriz Nossa Senhora do Patrocínio, onde fiz minha primeira comunhão em 1947.
Só deu Abaeté na entrevista.
Depois de três anos de sucesso na BBC, o passe de Tarcísio foi adquirido pela Rádio Suíça Internacional, onde trabalhou até a promulgação da anistia, em 1979. Decidiu então voltar ao Brasil, com residência em São Paulo, contratado por um grande jornal, se não me engano a Folha de SP.
Uma vez “aquilo”
Sua estadia, porém, foi fugaz, devido a um episódio ocorrido dentro de um ônibus que não era, por supuesto, da empresa B.H., inexistente no Brasil. Um menor de idade roubou a bolsa de uma passageira e foi detido por um policial que começou a espancá-lo.
– Mata! Mata esse vagabundo! – gritavam os passageiros enfurecidos, enquanto o meganha chutava com violência o corpo do menino prostrado no chão.
– Para! Para! É uma criança – berrou Tarcísio, usando a força do Capitão América para segurar o braço do policial.
– É um ladrão – respondia a turba enfurecida. Tarcísio objetou que existia lei no país para punir ladrões sem espancamento e que bater em menor é crime.
Por pouco, não lhe deram uma surra. Ficou horrorizado com o que presenciara, comprovando que uma vez “aquilo”, sempre “aquilo”. Além disso, assim como uma segunda língua, ele havia incorporado a civilidade no cotidiano. Decidiu aceitar proposta do Serviço Brasileiro da Rádio Nederland, na Holanda, onde reside há 32 anos. Na última visita que lhe fiz a Hilversum, uma cidade cercada por charnecas e florestas, fez questão de me apresentar sua colega na Rádio, a costa-ricense Maria B. Herediana, sobrinha do dono da empresa de ônibus, cujo nome completo ele pronunciou com todas as letras.
Taí o Tarcísio que não me deixa mentir. Ou deixa? Vamos conferir isso nesta terça, no Lamas, no debate Memória e Resistência com o cineasta Sérgio Santeiro e o outro Tarcísio, o Motta – um demolidor de muros de Jerusalém na Câmara de Vereadores do Rio, onde é o porta-voz da irmandade.
NOTAS:
Bicicletada – Lá na Holanda, Tarcísio anda de bicicleta sem medo de ser atropelado, como ocorreu com o professor da UERJ, Gilmar Mascarenhas, no centro do Rio, deixando desolados alunos, colegas e sua companheira, a antropóloga Letícia Luna Freire, além de três filhos órfãos. Na quinta (20) foi realizada uma bicicletada em sua homenagem.
Dom Moacyr –O arcebispo emérito de Porto Velho (RO), Moacyr Grechi, morreu aos 83 anos e foi sepultado nesta quarta (19). Tive a sorte de conviver com ele quando, era arcebispo de Rio Branco (AC). Apoiou sempe os movimentos sociais, as lutas dos índios, dos camponeses, dos sem-terra que choram sua partida. Foi acusado de ser “aquilo”. Agora repousa nos braços de Nhanderu.
Oráculo de Ifá – Tese defendida segunda (17) no Doutorado em Memória Social (Unirio) por Waldelice M. Silva de Souza: Oráculo do Risco da Semente – Os instrumentos divinatórios de Ifá na manutenção da memória coletiva afrodescendente. A partir do oráculo de Ifá, no Brasil e em Cuba, a tese discute a ação remanescente da memória e propõe a reconfiguração das ferramentas conceituais com ampliação da noção de memória social. Banca: José R. Bessa (orientador), Amir Geiger e Marcos Miranda (Unirio), Viviana Gelado (Uff) e Vera Casa Nova (Ufmg).