Editorial – O Globo – 28/03/21
Uma legislação tributária intrincada e extensa como a brasileira oferece inúmeras possibilidades à Receita para autuar contribuintes. Empresas que se consideram multadas indevidamente dispõem de um recurso antes de entrar na Justiça: apelar ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Mesmo assim, era pequena, até há alguns meses, a chance de ser acolhida uma reclamação bem fundamentada do contribuinte que dividisse o conselho ao meio.
Isso porque, em caso de empate entre os conselheiros, o presidente do Carf, um servidor da Receita, votava duas vezes, por meio do dispositivo conhecido como “voto de qualidade”. Essa regra estapafúrdia, extinta pela Medida Provisória do Contribuinte Legal ano passado, estará em questão num julgamento do plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) previsto para sexta-feira. Seria um absurdo se o STF restaurasse o voto duplo do presidente e, com ele, o desequilíbrio inaceitável entre as empresas e o Estado.
As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que pedem a restauração do voto duplo foram impetradas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pelo PSB e pela Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip). Estão sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello.
No Carf, são paritárias as representações da Receita e dos contribuintes. Uma emenda à MP estabeleceu um critério razoável em caso de empate: o contribuinte é o vitorioso, princípio consagrado na Justiça. Toda uma argumentação jurídica nas ADIs tenta qualificar essa emenda como um “jabuti”, um contrabando incluso no projeto fora da sua temática.
O argumento, porém, não para de pé. Tanto a MP quanto a emenda que extinguiu o esdrúxulo “voto de qualidade” tratam, por ângulos diferentes, do mesmo problema: o eterno litígio entre Fisco e contribuinte. A própria exposição de motivos da MP é clara ao descrevê-la como “instrumento de solução ou resolução, por meio adequado, de litígios tributários, trazendo consigo, muito além do viés arrecadatório, extremamente importante em cenário de crise fiscal, mas (também) de redução de custos e correto tratamento dos contribuintes”.
Outro argumento das ADIs é atribuir ao Parlamento a invasão de prerrogativas do presidente da República, a quem cabe disciplinar e organizar o funcionamento dos órgãos de governo. De acordo com essa argumentação, o meio adequado para extinguir o “voto de qualidade” seria um projeto de lei ou decreto presidencial. Novamente, o argumento é falho. Tanto a MP quando a emenda tratam de litígios entre contribuintes e Receita, sem interferir na organização ou na estrutura do Carf.
Cabe ao Supremo manter a integridade da lei, a fim de impedir que o Carf volte a ser um organismo em que as deliberações são previsíveis: sempre contra o contribuinte, ampliando as dores de cabeça jurídicas que afugentam investidores. Não se trata de tema que afete apenas as empresas. Está em jogo o direito amplo de defesa da sociedade perante um Estado grande e invasivo.