Do CONSULTOR JURÍDICO:
Por Rodrigo Haidar
O ministro Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, informou que o recurso do candidato ao governo do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC), contra a Lei da Ficha Limpa, deve ser julgado pelo plenário do tribunal na próxima quarta-feira (22/9), 11 dias antes das eleições. Roriz contesta a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que, por seis votos a um, barrou o registro de sua candidatura.
No TSE, a Lei Complementar 135/10 passou incólume a todos os ataques que sofreu. Os ministros eleitorais entenderam que a norma se aplica já nestas eleições, que não fere o princípio da irretroatividade da lei porque critério de inelegibilidade não é punição e que alcança os casos em que políticos renunciaram ao mandato para escapar de processos disciplinares, mesmo antes de as novas regras entrarem em vigor.
A expectativa é a de que o placar no Supremo, contra ou a favor da manutenção da lei, seja apertado. Muitos apostam em um empate em cinco votos a cinco, o que daria o direito de o presidente, Cezar Peluso, desempatar usando voto de desempate.
Mas ministros já adiantaram que, caso isso aconteça, levantarão um obstáculo: o de que a Constituição fala em votos de seis membros para declarar uma lei inconstitucional, e não em seis votos. Se esta posição prevalecer, a definição terá de esperar a indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a vaga do ministro Eros Grau, que se aposentou em agosto.
O recurso de Joaquim Roriz ao TSE foi o primeiro caso de registro de candidatura indeferido com base na Lei da Ficha Limpa em razão de renúncia para escapar de processo de cassação de mandato. Roriz renunciou em 2007 depois que conversas de uma investigação em que aparecia combinando a divisão de um cheque de R$ 2,2 milhões do empresário do ramo de transportes Nenê Constantino vieram a público.
O PSOL entrou com representação contra o então senador. Com a forte probabilidade de que sofreria um processo por quebra de decoro no Congresso, Roriz deixou o mandato no dia em que o Conselho de Ética se reuniu para decidir se abria ou não processo de cassação contra ele.
Renúncia punida
No julgamento do TSE, o relator do processo, ministro Arnaldo Versiani, sustentou que não cabe à Justiça Eleitoral avaliar se o político sofreria ou não a perda do seu mandato quando renunciou. Mas apenas tem de verificar se deixou o mandato depois de representação capaz de cassar o mandato contra ele.
O ministro Marco Aurélio foi o único a divergir, mantendo-se coerente com o que decidiu em outras ocasiões. Para o ministro, a Lei da Ficha Limpa altera o processo eleitoral. Assim, só poderia ser aplicada um ano após sua entrada em vigor. Como a lei foi sancionada em junho, na prática, só surtiria efeitos a partir das eleições de 2012. “Ninguém em sã consciência pode afirmar que a Lei Complementar 135 não altera o processo eleitoral”, afirmou.
Marco Aurélio também reafirmou que a lei não poderia retroagir para abranger as decisões da Justiça proferidas antes de sua vigência. No caso específico de Roriz, o ministro sustentou que rejeitar o registro do candidato fere o ato jurídico perfeito: “À época, não havia penalidade para a renúncia. Para tomar a decisão de renunciar, certamente o hoje candidato levou esse fato em conta. Neste caso, a inelegibilidade surge para ele como sanção”.
O argumento é o seguinte: quando Roriz renunciou, não existia qualquer punição ou vedação para o ato. Para tomar a decisão, ele levou em conta a legislação que existia naquele momento. Assim, não se poderia impor um critério de inelegibilidade que à época não existia.
Critério ou pena
O ministro Marco Aurélio, contudo, ficou vencido mais uma vez naquela ocasião. Para a maioria dos ministros do TSE, as condições de inelegibilidade não são penas ou sanções, mas critérios que devem ser aferidos no momento do registro da candidatura.
O relator do recurso de Roriz, Arnaldo Versiani, sustentou que o princípio da irretroatividade se refere à lei penal. Segundo ele, a decisão do Senado, caso o processo contra Roriz tivesse sido julgado na ocasião, se limitaria no máximo a decretar a perda do mandato do então senador. Assim, não há pena ou sanção. “Sem pena ou sanção, a Lei da Ficha Limpa não ofende o princípio da irretroatividade da lei penal para prejudicar o réu”, afirmou Versiani.
O ministro também atacou os argumentos da defesa do candidato do governo do Distrito Federal, feita pelo advogado Pedro Gordilho. De acordo com o advogado, mesmo antes de decidir pela instauração do processo, o Senado acolheu a renúncia de Joaquim Roriz e nem mesmo o PSOL, que havia pedido a abertura do processo, requereu o andamento do processo. Para Gordilho, isso revela que o Senado reconheceu que a representação não era capaz de se transformar em um processo.
E, segundo Pedro Gordilho, a Lei da Ficha Limpa é clara ao prever a inelegibilidade dos políticos que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição “capaz de autorizar a abertura de processo”. Disse também que Roriz sequer foi comunicado da reunião do conselho no Senado. Os argumentos, contudo, não surtiram efeito.
Contra as alegações de Gordilho, o ministro Arnaldo Versiani respondeu que os fatos demonstram que Roriz renunciou para travar o processo que poderia sofrer. E o fato, apesar de ter ocorrido em 2007, se enquadra perfeitamente nas novas hipóteses de inelegibilidade criadas com a Lei da Ficha Limpa. “Mesmo sendo ato jurídico perfeito, não se pode entender que a renúncia é ato infenso a consequências futuras”. Para o ministro, o ato jurídico perfeito significa que a renúncia não pode ser desconstituída, mas não que outros efeitos dela acabam com o próprio ato de renunciar.
Versiani voltou a argumentar que inelegibilidade não é pena, mas critério. Por isso, os efeitos da lei sobre a renúncia de 2007 têm de ser verificados no momento em que Joaquim Roriz pediu seu registro. Outros cinco ministros acompanharam os argumentos do relator. O ministro Henrique Neves divergiu apenas na questão do prazo para aplicação da lei. Neste ponto, concordou com Marco Aurélio, ao afirmar que as novas regras interferem no processo eleitoral. Mas no mérito votou com a maioria e rejeitou o recurso do candidato ao governo distrital.
A ministra Cármen Lúcia afirmou que só seria admitida a tese da retroatividade se o pedido de registro tivesse sido feito antes da entrada da lei em vigor. Sobre a presunção de inocência, princípio segundo o qual ninguém é considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, a ministra afirmou que “o que a Constituição Federal adota é a presunção de não culpabilidade em matéria penal”.
O presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, afirmou que a questão revela o choque entre dois princípios: o da moralidade administrativa contra o da presunção de inocência. Para ele, em matéria eleitoral, deve prevalecer o primeiro princípio. Os ministros Aldir Passarinho Júnior e Hamilton Carvalhido também votaram contra o recurso de Roriz.
Limpeza eleitoral
O recurso de Roriz foi o segundo contra indeferimento de registro de candidatura com base na Lei da Ficha Limpa que o TSE julgou. No primeiro, o tribunal decidiu, por cinco votos a dois, que as exigências da Lei Complementar 135/10 se aplicam aos candidatos condenados por órgãos colegiados mesmo antes de a norma entrar em vigor.
Na ocasião, a tese que prevaleceu foi a de que critérios de inelegibilidade não podem ser enquadrados como punição ou pena. São condições exigidas para o registro de candidatos. E essas condições devem ser aferidas no momento do pedido de registro da candidatura.
O raciocínio para determinar que critério de inelegibilidade não é pena, é o seguinte: Dona Marisa, mulher do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não pode concorrer. E isso não pode ser enquadrado como punição. É uma vedação de cunho eleitoral estabelecida em lei.
Outro exemplo: para se candidatar, juízes têm de pedir exoneração do cargo. E não se pode afirmar que isso é uma pena. O mesmo raciocínio se aplicaria para os novos critérios criados para barrar candidaturas. Logo, não há espaço para se falar em violação ao princípio de que a lei não pode retroagir para prejudicar o réu.
Neste ponto, o ministro Marcelo Ribeiro, que não participou do julgamento desta terça-feira, diverge da maioria do tribunal. Ele separa as causas de inelegibilidade de duas formas. Para o ministro, elas podem ter, ou não, caráter de sanção.
De acordo com o entendimento de Ribeiro, se a inelegibilidade decorre da prática de um ilícito eleitoral, ela revela caráter de pena porque é imposta em razão da prática do ilícito. Logo, não poderia haver a retroatividade para prejudicar o candidato. Já as causas de inelegibilidade decorrentes de parentesco ou por ocupação de cargo público não são tidas como sanção. Assim, para essas, especificamente, não cabe falar de retroatividade.
Mas Ribeiro, junto com Marco Aurélio, costuma ficar vencido na discussão. Para a maioria do TSE, os candidatos condenados por órgãos colegiados mesmo antes da lei podem ter seus registros negados pela Justiça Eleitoral. Ainda que a decisão já tenha transitado em julgado, os novos critérios da Lei da Ficha Limpa se aplicam.
O tribunal também já definiu que a nova lei tem aplicação imediata. Pelo mesmo placar de cinco votos a dois, os ministros entenderam que a lei não se enquadra no princípio da anualidade previsto no artigo 16 da Constituição Federal: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Como a Lei da Ficha Limpa foi sancionada em junho, há apenas quatro meses das eleições, não poderia barrar as atuais candidaturas.
Mas a maioria dos ministros acompanha o entendimento do presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, para quem o prazo de um ano para a aplicação de lei só se justifica nos casos em que há deformação do processo eleitoral. Ou seja, nos casos em que desequilibra a disputa, beneficiando ou prejudicando determinadas candidaturas.
Como a Lei da Ficha Limpa é linear, ou seja, se aplica para todos indistintamente, não se pode afirmar que ele interfere no processo eleitoral. Logo, sua aplicação é imediata.
Caso Roriz
Joaquim Roriz recorreu ao Supremo contra a decisão do TSE que rejeitou seu registro por quatro votos a dois. O candidato foi enquadrado na nova legislação em razão da renúncia ao mandato de senador em 2007, pouco antes de o Senado decidir se abriria processo por quebra de decoro parlamentar contra ele. A Justiça Eleitoral entendeu que ele renunciou para escapar do processo, o que pela nova lei é um critério de inelegibilidade.
Roriz foi eleito senador em 2006, com 51,83% dos votos válidos. Seu mandato terminaria em 2014. De acordo com a nova regra, o prazo de oito anos em que o político fica inelegível começa a contar de quando terminaria seu mandato. Logo, Roriz não poderia concorrer a nenhum cargo eletivo até 2022. A proibição de concorrer às eleições para os políticos sob investigação administrativa que renunciam ao mandato está prevista na letra k do artigo 1ª da lei.
De acordo com o dispositivo, são inelegíveis “o presidente da República, o governador de Estado e do Distrito Federal, o prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura”.