Por Ives Gandra da Silva Martins, em “O ESTADO DE SÃO PAULO”:
Não consigo adaptar-me a uma realidade em que descumprir a lei é motivo de aplausos
Aos 82 anos, confesso sentir-me politicamente incorreto, pois não consigo adaptar-me a uma realidade em que o descumprimento da Constituição e da lei pode ser praticado com aplausos de parte da mídia e de autoridades respeitadas no País.
Como operador do Direito há quase 60 anos, não me habituo ao atual protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF), cujos ministros, reconhecidamente eminentes juristas, em vez de “guardiões da Constituição” (artigo 102), não poucas vezes a alteram, criando novas normas. A invasão de competências legislativas é proibida pelo artigo 103, § 2.º, ao prever que nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, declarada a omissão do Congresso, cabe ao Supremo apenas solicitar-lhe que produza a norma. Se não pode legislar nessas ações, não o pode também em habeas corpus, mandados de injunção ou quaisquer outros veículos processuais não vocacionados a interferência na função legislativa.
Ora, o STF legislou no caso de prisões de parlamentares por crimes no exercício do mandato, sem autorização da Câmara (artigo 53, § 3.º, da Constituição); no caso da interrupção da gravidez de anencéfalos, criando hipótese de impunidade para aborto eugênico não constante do artigo 128 do Código Penal. Legislou ao permitir o homicídio uterino até três meses de gestação sem nenhuma justificativa; ao permitir que a união entre pares do mesmo sexo, o que é legítimo, tivesse o mesmo status que o casamento, instituto que a Lei Suprema apenas admite para a união entre homem e mulher (artigo 226, § 3.º). Legislou quando permitiu que candidato derrotado assumisse governo de Estado, sem novas eleições diretas ou indiretas (artigo 81); desconsiderou a presunção de inocência, o devido processo legal e o instituto da coisa julgada para permitir a prisão em segunda instância (artigo 5.º, inciso LVII).
O Congresso Nacional, acuado pelas denúncias da Lava Jato, não tem coragem de se opor a essa invasão, razão pela qual não tem desobedecido às ordens emanadas daquele Poder, apesar de o permitir o artigo 49 inciso XI da Lei Suprema. Basta lembrar a determinação para anular a votação de projeto de iniciativa popular elaborada pelo Ministério Público contra a corrupção, nos termos em que foi por ele modificado. Criou o STF a obrigação de um projeto de iniciativa popular, assinado por 2 milhões de brasileiros, ser compulsoriamente “homologado” pelo Congresso eleito por 140 milhões de brasileiros, sem alterações!
Em artigo neste jornal, A verdade sobre as ‘10 Medidas’ (contra a corrupção), Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Hamilton Dias de Souza, Renato de Mello Jorge Silveira e eu mostramos como muitas das sugestões lá contidas eliminariam o mais sagrado direito de uma democracia, que é o direito de defesa, inexistente nas ditaduras.
Por outro lado, o Ministério Público, em que atuam bons juristas, incluídos os do Paraná, em certas atuações cinematográficas tem procurado desconstituir o instituto universal in dubio pro reo, como se uma investigação bem fundamentada pudesse justificar a pena, mesmo que haja dúvidas. Segundo essa nova interpretação, a dúvida, beneficiaria a acusação, não o réu.
Tenho dito que o Brasil muito deve a Sergio Moro, à Polícia Federal e ao Ministério Público por desventrarem a corrupção e darem novo alento ao País, mas tenho também feito críticas à interpretação dos delitos cometidos – para mim, muitos se assemelham à concussão imposta pelos governos dos últimos 13 anos –, assim como às prisões preventivas prolongadas (artigo 5.º, inciso III, da Lei Maior).
Por outro lado, o Ministério Público não deve presidir os inquéritos policiais, função que a Constituição, no artigo 144, § 4.º, outorga exclusivamente a delegados de polícia.
Minhas “irritações conjunturais” não ficam apenas nesses pontos. Não entendo como invasões de terras, de propriedades públicas e privadas, seguem impunes, sob a alegação de que é uma forma de protesto.
Outro aspecto de ser politicamente incorreto diz respeito à fé professada nas mais diversas Igrejas, sejam elas católicas, evangélicas, ortodoxas, judaicas ou islâmicas. Aqueles que as frequentam, ou são declaradamente delas participantes, constituem mais de 80% da população. Seus espaços na mídia, entretanto, são minúsculos, restando a seus seguidores de maior conceito público o direito de escrever um ou outro artigo nas páginas de opinião. Suas posições são, todavia, claramente ignoradas nas diversas seções dos jornais. Trata-se de uma expressiva maioria silenciosa, considerada conservadora perante a minoria barulhenta dos “progressistas”, para quem a liberdade sem limites e sem critérios merece todos os espaços dos meios de comunicação.
Sendo um advogado e professor que nunca quis ser senão advogado e professor, sinto-me, aos 82 anos, um cidadão politicamente incorreto, pois defendo a democracia do voto, e não das invasões; da independência e autonomia dos Poderes, e não do desrespeito ao limite de competências; da moral familiar e da cidadania, e não da imposição de desejos das minorias sobre os valores da maioria. Entendo também que a advocacia e o Ministério Público são funções essenciais à administração da justiça, como determina a Constituição (artigos 127 a 135), não sendo o Ministério Público um superpoder sem possibilidade de ser responsabilizado.
Por fim, tenho para mim que os cidadãos que acreditam em Deus devem ser respeitados, e não hostilizados pela minoria agnóstica que, à luz de seu pretendido e mal concebido “Estado laico”, entende que só os que não acreditam em Deus podem ter atuação política e na mídia.
Na esperança de que um dia o Brasil seja uma democracia real em que a maioria do povo tenha sua voz ouvida em seus valores, sem ser silenciada pelos preconceitos ideológicos da minoria, reitero ser um velho advogado e professor “politicamente incorreto”.
*Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifeo e UNIFMU, do CIEE/O Estado de S. Paulo, da Eceme, da ESG e da Escola da Magistratura do TRF-1ª Região