Por Carlos Melo Cientista Político e Professor do Insper, captado do JOTA – http://jota.uol.com.br/sobre-principes-e-leviatas-qualidade-da-democracia-e-tao-importante-quanto-propria-democracia:
A interminável fila em que senhores e senhoras deputados se sucederam para votar, contra e a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, escancarou a profunda cicatriz que já há alguns anos se notava: a situação sistema político brasileiro é mesmo deprimente. Legítimo, sim, e pode até representar o voto – embora não o desejo – de eleitores pouco envolvidos com a política. Mas, o fato é que é deprimente; seu descrédito ganhou o mundo, foi percebido aqui e nos quatro cantos do planeta.
Menos pelo que votou ou no que votou – prerrogativa do Parlamento – do que pela forma e pelos interesses paralelos que assumiram centralidade durante uma votação daquela importância: a encenação grotesca e a superficialidade revelaram o estado da arte. Somente o respeito à democracia e paciência cívica para continuar crendo naquela dinâmica; difícil não questionar um Congresso assim: para que serve, afinal? A qualidade da democracia é tão importante quanto a própria democracia.
Sim, o Poder Executivo não é muito melhor; mas ele se revela a cada dia, em cada questão concreta; é mais exposto que obscuros parlamentares que se escondem detrás de dirigentes e de pretensos líderes. Desnecessário repetir o que todos viram na TV, ao vivo. Todo Congresso, com efeito, possui indivíduos folclóricos, mas o brasileiro – salvo exceções – parece um todo folclórico, repleto de napoleões de hospício e jecas de paróquia.
Quem é de fora do Brasil talvez custe a crer, mas nem sempre foi assim. Foram tantas jornadas e vários foram os expoentes que tivemos, década após década. O Congresso atual, não reproduz, não, a sociedade brasileira. Pode representar partes desconexas dela, mas não alcança o todo, muito mais complexo e moderno do que aquilo que se viu. Afirmar que, sendo fruto de eleição, a Câmara é necessariamente representativa só pode ser resultado do senso comum ou da preguiça de se por a avaliar o processo dos últimos anos.
Esta é a tarefa principal: compreender, afinal, o ocorreu no Brasil. O país vive seu pior deserto, de quadros e de política. Os quadros são assim tão precários pela má política que se faz, ou a política precária se dá pela qualidade dos quadros? Temos aí um daqueles enigmas de ovo e galinha. O que, de fato, se passou? Como chegamos até aqui?
Como em todo fenômeno complexo, é impossível explicá-lo por uma única causa. Houve uma torrente de fatos e acontecimentos que ajudam a compreender o quadro – certamente, alguns outros pontos de valor explicativo ficarão fora desta análise, uma tarefa em construção.
Mudanças na lei eleitoral, é claro, contribuíram com sua parte: com a desculpa de dar oportunidades iguais a todos, os tais “candidatos de opinião” foram negligenciados. Com o objetivo de coibir o abuso econômico, ou a participação privilegiada das tais “elites,” proibiu-se a divulgação mais ampla das candidaturas de formadores de opinião – outdoors, cartazes, participação maior no tempo de TV… tudo sumariamente abolido.
Entre outros, figuras como Delfim Netto, José Eduardo Cardozo, Eduardo Jorge e Fábio Feldman (há uma infinidade) – sem curral, desvinculados de movimentos sociais, formuladores de qualidade, sem penetração de massa — passaram a ter maiores dificuldades para serem eleitas, até que vieram a desaparecer. Foram favorecidas candidaturas que trouxessem votos, não opinião nem qualidade de intervenção política.
O foi o custo da democracia de massas: privilegiou-se a participação, a expansão da política, a inclusão dos diversos setores sociais. Isso é bom. Mas não houve critério de qualidade: os partidos não formaram, a sociedade votou antes pelo elo pessoal ou pelo deboche do que pela consciência de que a política é o melhor instrumento para resolver os problemas da sociedade. “No Brasil”, disse Sérgio Buarque de Holanda, “a democracia foi sempre um lamentável mal-entendido”.
Daí se viu a insistência de vários políticos com eleições majoritárias intermediárias, de modo a ficarem conhecidos para as eleições posteriores, tipo “ei, ei, Eymael, um democrata cristão”. Há outros pescadores de águas turvas, recolhendo na eleição presente o peixe da eleição. O importante passou a ser manter o curral.
Houve também, é claro, a dinâmica eleitoral derivada do voto proporcional e das coligações proporcionais: votar em João, do partido A; eleger José, do partido B. Uma miríade de candidatos menores, sem qualidade de intervenção política, multiplicadores de clichês e do senso comum, tiveram seus passes valorizados apenas porque “traziam votos”. E, assim, todos os partidos lançaram os seus apresentadores de programas de rádios e TV, suas celebridades decadentes, seus ex-jogadores de futebol; as figuras bizarras e folclóricas que mais chamassem atenção na mesmice dos programas eleitorais de rádio e TV.
Num nível mais orgânico, representantes de nichos específicos, que carregavam quinhões de votos, foram recrutados pelo sistema: donos de máquinas sindicais, igrejas, movimentos sociais e currais eleitorais regionais. Juntaram-se, assim, às celebridades decadentes os donos de aparelhos paroquiais; desapareceu a inteligência e a colaboração política de uma esfera mais elevada — que sempre teve seu espaço na política nacional.
Sim, também o toma-la-dá-cá do presidencialismo de coalizão teve sua parcela de responsabilidade por este bolo de má qualidade: “fazer uma grande bancada” e, portanto, influenciar o Executivo, arrancando-lhe mais recursos – que no limite serviriam para alcançar novo sucesso eleitoral — passou a ser o objetivo de todas as legendas, em todas as esferas.
A formação de uma coalizão fisiológica, pouco ou nada programática, foi a base da racionalidade dos Executivos em todo o país — seja na União, nos governos estaduais e nos municípios. É uma prática, sim, que sempre existiu, mas que nas últimas décadas se expandiu e se generalizou; basta visitar assembleias legislativas e câmaras de vereadores pelo Brasil afora para se constatar que não foi exclusividade de Dilma ou do PT. Aliás, para o que serve mesmo um deputado estadual?
Mas, talvez, o primeiro elemento e maior responsável pela hecatombe que se abateu sobre o sistema político seja mesmo a própria sociedade, que abandonado a política como elemento vital e transformador da realidade que a cerca. Ao passou que se desligou da política, a sociedade passou a dar demasiada importância à economia, acreditando que era na esfera econômica – não na política, que tudo se resolveria.
Os partidos, primeiro, e, depois, os governos também acreditaram nisso: negligenciaram a qualidade de suas alianças eleitorais e de coalizões parlamentares. Foi o império daquilo que que o economista Marcos Lisboa chamou de “fetiche da macroeconomia”. Não se compreendeu que até mesmo a racionalidade econômica é resultado da boa política e não da não subserviência desta pela primeira.
Foi um erro que desvitalizou a política; a sociedade, desse modo, retirou-se da Política; negou a oferta de seus melhores quadros – que foram cuidar de seus interesses econômicos particulares. Do ponto de vista pessoal, foi uma escolha legítima. Mas, é prova de que o primado do bem individual pode levar também ao desastre coletivo.
Os argumentos acima podem ser interpretados como uma visão elitista da política; e de fato é. A questão é qual será o entendimento que o leitor terá do termo “elite”. O que importa é que as elites – econômicas, intelectuais, artísticas, sociais e sindicais — retiraram-se da cena num processo que deu ensejo para a dinâmica acima. A seleção foi adversa e personagens menos aptos ou dispostos à grande Política hoje, contra ou a favor do impeachment de Dilma, votam por deus, pela mulher, pelo filho, pelo curral, pela a amante… Menos pelo Brasil. Uma reforma disto tudo urge tanto quanto ruge o leão do tempo.