Do CONJUR, Por Lenio Luiz Streck:
Esta coluna tem um subtítulo, que poderia ser Ação penal fast food do Acre, indenização de R$ 7 na Bahia e fonte secreta para decretação de prisão no RN: o que mais vem ai? Por isso, peço paciência e muita reflexão. Deixemos o tempo da pós-modernidade de lado. Sejamos apenas bons modernos. E leiamos a coluna até o final, desarmados. Com efeito. Nestes tempos difíceis de descumprimento de leis, códigos e da Constituição e do marasmo da dogmática jurídica que insiste, regra geral, em repetir catilinárias que tecem loas às velhas posturas protagonistas, lembro de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. O bebê nascido morto e prematuro. Tio John leva o caixote em que jaz o pequeno cadáver para longe do acampamento. Mas, ao invés de enterrá-lo, deposita-o sobre as águas revoltas de um riacho que a enchente tornou violento. Ao ver o caixote — usado para o transporte de maçãs — sendo levado pelas forças das águas, ele, tão calado e contido, incapaz de se queixar das agruras do cotidiano, grita ao bebê morto, como em um “desabafo fundamental e transcendental”:
Vai, vai rio abaixo e diz aquilo para eles. Vai descendo e estaca na estrada e apodrece e diz para eles como é. É o único jeito de tu dizeres as coisas. Nem sei se tu és menino ou menina, mas nem quero saber. Vai descendo e apodrece na estrada. Talvez, então, eles fiquem sabendo.
Sim — acrescento — talvez então “eles” fiquem sabendo… Na metáfora dos caixotes navegam para o apodrecimento os restos da ciência jurídica e de uma dogmática que que entregou ao simplismo, ao concursismo e ao manualismo mais raso… Talvez o apodrecimento nas margens seja o único modo de dizer “coisas” para eles!
Por que a dramaticidade? Porque parece que está cada dia mais difícil dizer o óbvio. E clamar que acreditem no óbvio. Eu poderia começar com um caso ocorrido na Bahia, acerca da determinação de um juiz para que uma operadora de telefonia (companhias telefônicas são hipossuficientes!!!) pagasse uma indenização de R$7,47 (setereaisequarentaestecentavos) a uma cliente que foi molestada em R$ 193,50 (ler aqui). A Associação dos Magistrados da Bahia justificou a decisão, dizendo que “as decisões judiciais não refletem as posições pessoais dos magistrados. Elas são fundamentadas na legislação vigente e no livre convencimento do mesmo” (ler aqui). Bingo. Viva o livre convencimento. Ele está aí. Serve para blindar qualquer decisão. Ah: será que a associação de classe dos juízes esqueceu que o novo Código de Processo Civil retirou a palavra “livre” (artigo 371)? Portanto, nem a nota oficial se baseou na legalidade. Bem… o que mais precisaria ser dito?
Poderia parar a coluna com a notícia da Bahia. Mas vou seguir. Com John Steinbeck, que também achava difícil denunciar o sistema econômico-social dos Estados Unidos dos anos da grande depressão. Quem lê o livro ou vê o filme, chora. A metáfora do caixote e a mudez do Tio John nos apontam para modos de deixar que as coisas nos falem. Como dizia Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto diga algo. Deixemos que as coisas nos digam. Talvez fazer palavras com coisas…
Abusos. Descumprimento de garantias. Coisas mínimas. Coisas máximas. Ministro da Justiça, que, como secretário, inventou um novo modo de reintegração de posse. Na marra. Advogados que não podem se entrevistar com os clientes face a uma portaria do Ministério da Justiça. A portaria vale mais do que a Constituição. E não é contestada pelo Ministério Público. Ainda aplicamos a tese da inversão do ônus da prova penal. Enunciados que valem mais do que o CPC. Presunção da inocência que vira a não-presunção. Positivismo jurisprudencialista tomando conta do direito (não há mais leis e CF; existe só o que o judiciário diz que as leis e a CF são; sai a lei e entra a jurisprudência... E tem gente dizendo que o CPC fundou um sistema de precedentes… que lástima). Somando tudo, temos o que temos. Sequer conseguimos fazer cumprir o novo CPC. Afora isso, as vinhas-da-ira-epistêmica aqui se voltam para as audiências de custódia, darwinianamente adaptadas por juízes e promotores para que as coisas continuem como estão. Claro que os números mostram avanços. Mas poderíamos avançar mais.
Vejam o caso ocorrido no Rio Grande do Norte. Audiência de custódia (AC). Presentes o advogado, a ré, a promotora e o juiz. Apresentado o réu (ou seja, dado o corpo ao juiz, como quando do surgimento do habeas corpus no século XIII), o Ministério Público pede a preventiva. O advogado pede a liberdade provisória com ou sem as medidas cautelares, invocando jurisprudência do STF no sentido de que a gravidade do crime não justifica, per se, a prisão cautelar. Até aqui, tudo normal. Tudo legítimo.
No entanto, disse o juiz que não seguia essa (sic) jurisprudência do Supremo. E falou da gravidade do crime imputado ao flagrado. Manteve a ré presa (houve mais duas pessoas que foram apresentadas, mas não interessam aqui). Mas isso até nem impressiona para os fins desta Coluna. O fato é que o magistrado, para “fundamentar” a prisão, disse que recebeu informações extra autos que justificavam a prisão de uma acusada e a soltura de outra. As informações teriam sido passadas a ele por fonte fidedigna. O causídico, então, requereu que essas palavras do juiz fossem colocadas em ata. Afinal, informações extra autos são coisa séria. Além disso, a própria questão relacionada a jurisprudência do STF, contestada pelo magistrado.
Qual é o busílis? O busílis é que o juiz se negou a relatar o que ocorreu, ou seja, escrever o que usara como fundamento. Segundo ele — há gravação de áudio dessa parte — esse procedimento de AC não tem ata ou formalidade para registrar o que se passou. Consequentemente, negou o pedido de transcrição no termo ou ata (seja lá o nome que se dê a isso). O causídico foi buscar socorro na OAB. Pediu, formalmente, que fosse registrada essa circunstância.
Pronto. Não importa, aqui, o resultado. Não importa, também, se o preso apresentado na AC deveria ou não ficar preso. Isso é mérito e nele não adentro. O que importa é o simbólico disso. Como é possível que o juiz diga que tem informações extra autos provenientes de fonte fidedigna e o advogado não tenha o direito de conhecer tais elementos que, provavelmente, foram fulcrais para a decretação da prisão? Íntima convicção do juiz? Isso pode vir de algum lugar secreto? De cocheira? Que fonte fidedigna seria essa? O que é isto, informação extra autos? Quer dizer que o sujeito pode ser preso porque o juiz ficou sabendo de coisas que não estão nos autos? O que está fora dos autos, nestes tempos de pós-modernidade, “virou” processo?
Acontece que isso ocorre todos os dias e nos vários campos do Direito. Trata-se de discutir o direito de o advogado ter a transparência do que ocorreu. O juiz agiu fora dos pressupostos previstos no CPP e no Estatuto da Advocacia, negando-se a colocar em ata coisas fundamentais ocorridas na audiência (de custódia). Ocorre que o que havia ali ocorrido fora uma audiência. Pública. É, pois, direito da parte, do réu, do preso, fazer constar tudo o que ocorreu na audiência. Ouvem-se pessoas. Inclusive são ouvidos o MP e a defesa. Logo, isso tem de ser formalizado. No caso aqui evidenciado, ouvi a gravação e o juiz dizendo que não fará constar em ata, com informações do tipo “esse é o meu procedimento”. Ah é? Será que o juiz leu a Resolução 18/2015, do TJ de seu estado, que diz no artigo 3º, §4, que “Será lavrado termo sucinto da audiência de custódia contendo os fundamentos da decisão judicial proferida, seu dispositivo e o que mais for relevante para o ato, o qual deverá permanecer em autos apartados do processo principal”. E o que dizer das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (por exemplo, a 213, em seu artigo 8º, § 3º)? E a CF? E o CPP?
Pior ainda: o Ministério Público, fiscal da lei, nada fez. Quedou-se silente em relação ao requerimento do advogado, ao que sei. O que quero dizer é: no momento em que o advogado pede/requer para fazer constar por escrito isso que ocorreu (de que o juiz teria dito que tinha informações relevantes extra autos), das duas, uma: a) ou o advogado está faltando com a verdade, fazendo chicana e, portanto, o MP, fiscal da lei, deve agir, ou b) se de fato o juiz disse que tinha informações extra autos, o MP, ao nada fazer, corre o risco (estou sendo generoso) de prevaricar. Ou no mínimo de não ser diligente e se portar como um mero acusador e não como um promotor de justiça, como requer a CF.
Quando ao proceder do juiz, o que dizer? Milhares de advogados sofrem com esse tipo de coisa todos os dias. Exercer a advocacia nestes tempos difíceis é um exercício de humilhação cotidiana, como me disse dia desses uma pessoa muito próxima, que sofre cotidianamente com esse tipo de coisa. Só para registrar, de novo: eis um jogo de soma zero e que atinge também o MP, que não se dá conta dessas coisas, porque se comporta como o antigo “promotor público”. Explico:
a) se o advogado pediu algo que não ocorreu, então, mente ou
b) se o juiz se negou a transcrever o que houve, então o juiz pratica abuso. Logo, conclusão: há erro de um ou de outro.
Mas, nas duas hipóteses, o MP erra, ao se quedar silente diante de um dos dois erros. Tertius non datur.
Ah, essas coisas de Pindorama. Essa racionalidade teológica do direito, como diria Hans Albert. Depois ouvimos, em congressos por aí, juízes e promotores falando em direitos fundamentais. Isso, no público. No particular, ouve-se mais coisas do tipo “lá na minha vara não tem essa coisa de advogado…”. “Na minha promotoria…”. Bom, o resto os leitores podem completar. Nas audiências trabalhistas, o sofrimento dos advogados é cada vez pior. A demo-cracia não chegou à sala de audiência.
Eis um problema que venho denominando de PCJ (Privilégio Cognitivo do Juiz), sufragado pela dogmática jurídica nos livros e nas salas de aula em um país que nem tem quadros para lecionar em tantas faculdades. Professores formados a machado para suprir tantas vagas em tantas faculdades. Um país de direitos simplificados, facilitados, mastigados… Compêndios. Resumões. Coachings. Interessante: Essa mesma dogmática queijo suíço se queixa exatamente daquilo que ela mesma sempre fomentou: que no processo, há um PCJ. Tenho amigos, juristas importantes, que levaram anos para me dar razão. Eles achavam que, em sendo o livre convencimento “motivado”, estava atendido o requisito constitucional da fundamentação. Queriam me aplicar a velha história da prova tarifada (como disse um outro Amigo dia destes, ironicamente, “- hoje se a prova fosse tarifada, seria bem melhor…”!). De todo modo, para minha satisfação, hoje uma pequena parcela dos processualistas concorda comigo nessa cruzada contra o protagonismo, o instrumentalismo, o livre convencimento (que é um problema filosófico-paradigmático e não de história de tarifação de prova) e tudo o que disso decorre na vida dos causídicos e dos cidadãos submetidos ao MP e ao PJ. O acusado acaba dependendo do PCJ e não do arsenal de garantias que a CF e o CPP lhe dão. E isso não é democrático.
Aliás, sobre audiência de custódia, lembro aqui parte de texto publicado por Pedro Abramovay (aqui): “Em primeiro lugar, os juízes se utilizam da ideia de que não se julga o mérito nas audiências de custódia de maneira bastante arbitrária. As audiências de custódia, de fato, não são audiências finais, nas quais se profere uma sentença de condenação ou não do réu. Mas é claro que o mérito é relevante. Isso aparece em muitos momentos na justificativas dos juízes para manter os réus presos. Mas cada vez que a defesa tenta levantar uma questão de mérito os juízes não admitem escutá-los”. O texto de Abromovay é autoexplicativo. Não quero me estender porque colunas com mais de três páginas fracassam. Esta aqui já deu quatro. Provavelmente fracassará.
Post scriptum1: Paradoxo: atirar no tatu pode ser menos grave que atirar no fiscal
Um bom exemplo para me dar razão nas coisas que escrevo é o caso do dono de banca de jornal condenado a mais de 7 anos de prisão por ter cometido crime contra a honra de um juiz. Preso desde dezembro de 2015, teve três habeas negados. Pois não é que, saindo uma reportagem no jornal O Estado de S. Paulo (reproduzido pela ConJur) e, bingo. No dia seguinte foi concedido o habeas corpus pelo mesmo desembargador que negara três vezes. Eis aqui uma boa lição para a doutrina, que, como venho dizendo, deve voltar a doutrinar.
É a doutrina que deve constranger… e não a mídia. A doutrina deve ter o poder da mídia. Em 24 horas a mídia conseguiu o que o processo penal ordinário não conseguiu em 8 meses. Simples assim. É vergonhoso. Pavoroso. A pergunta que fica é: essa decisão apaga os erros das decisões anteriores? Qual teria sido a posição do Ministério Público? A malta toda quer saber. A qualidade da vítima foi fulcral, pois não? Ou alguém, de sã consciência, acredita que um crime de menor potencial ofensivo acarrete uma prisão cautelar de mais de 8 meses e uma pena maior do que de homicídio simples? Basta olhar a jurisprudência. Ou alguém acredita que, se a vítima não fosse um juiz, a pena seria essa? Isso é bizarro. Parece aquela piada do campesino que atira em um tatu e recebe o conselho de, na próxima vez, atirar no fiscal do Ibama em vez de tatu ou onça. Por que? Porque, por matar o tatu, a possibilidade de ficar preso antes da sentença era bem maior. É uma anedota-metáfora. Cultura popular. Exagero que diz muito.
Post scriptum 2: No Acre, uma ação penal em 24h? Fast food processual?
Fiquei sabendo que o MP do Acre está exultante com uma ação penal em que, no mesmo dia, houve denúncia, instrução, julgamento e sentença (ler aqui). Crime de roubo. Pena de 5 anos e 4 meses. O que dizer disso? Processo virou “isso”? Porque não dispensamos logo os advogados? Vamos fazer tudo sumarissimamente. Em um dia. Claro: para a patuleia. As experiências sempre se fazem com os patuleus em um país periférico. A propósito: em quanto tempo o MP devolve os autos de um habeas corpus lá no Acre? E no resto do país? E em quanto tempo é julgado um habeas no Acre? E no resto de Pindorama? E os recursos da LEP? Levam só 24 horas? Façam-me o favor. Vamos todos para Estocolmo. Este ano vai ter Nobel para o Brasil.
Uma palavra final…
Em um país com um milhão de advogados, os leitores não acham que estamos indo longe demais? Será que não estamos esticando a corda para além do permitido? Ainda temos uma demo-cracia?
Eis porque coloquei no início da coluna o romance premiado de Steinbeck, As Vinhas da Ira: “— Vai, vai rio abaixo e diz aquilo para eles”. Deixemos, pois, que as coisas digam para eles todos. Deixemos que as coisas falem. Já que não somos ouvidos, talvez “as coisas” falem mais alto.
E uma conclamação pela dignidade da advocacia: advogados de todo o Brasil, façamos do dia 11 de agosto um dia de reflexão. De verdade. Depois da ação penal fast food, da indenização de R$ 7, da prova secreta e do sujeito que ficou preso 8 meses por crime de menor potencial ofensivo, acho que chegou a hora de dizer que a quem vêm os advogados. Endireitar a coluna vertebral. Não mais passar por debaixo da porta do fórum. É isso. Só tem dia comemorativo quem não tem vez. Dia do negro (os outros dias são dos brancos); dia do trabalhador (os demais são dos patrões); dia do índio (o resto…); dia da mulher (o resto…). E assim por diante. Dia do advogado. Dia 11. Os outros dias são de quem? Responda você. Reflita. Façamos os outros dias de dignidade para os advogados. Sem súplicas. Sem humilhações. Sem corrida de obstáculos. Sem ter que discutir o óbvio para exigir os mínimos direitos como fazer constar alguma coisa em ata. Advogados de todo país: uni-vos. Nada tendes a perder depois de tudo que já perderam. Passem a frente esta corrente pela dignidade da profissão.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.