“Há tanta angústia antiga em cada prédio / Em cada pedra nua e gasta. E agora (…) / memória e angústia fundem-se num branco / cavalo manco numa rua torta. (Luiz Bacellar. Noturno do bairro dos Tocos. 1963)
Os poetas é que deveriam identificar a causa mortis das pessoas e aqui me refiro às causas profundas, as que ferem a alma e não aquelas superficiais, que aniquilam o corpo e são reveladas por necrópsia, como ocorreu com Rubens de Lima Pereira, falecido nesta terça (7), às 8h10, no Hospital 28 de agosto, em Manaus. O médico legista garante que a morte foi causada por insuficiência respiratória e pelo “megacolon idiopático” – seja lá o que isso signifique. O Google me diz que se trata do bloqueio das fezes devido à dilatação do intestino grosso, uma enfermidade que dá também em gatos.
Outro, no entanto, foi o laudo dos profissionais da poesia. Uma junta poética formada por Aldísio Filgueiras e Luiz Pucú fez a “necropsique” com a lâmina afiada da inspiração e da sensibilidade e concluiu que, na verdade, Rubens morreu de Aparecida. Isso mesmo: essa foi a causa mortis. Moradores do antigo bairro dos Tocos morrem de Aparecida, quando o vírus se infiltra lentamente no psiquismo do paciente, penetra no seu coração, dilata sua memória, impedindo que esqueçam eventos da infância.
O esquecimento, assim como a memória, são forças necessárias para a saúde de indivíduos, povos, culturas, já nos lembrava o filósofo Nietzsche. É preciso saber esquecer de forma seletiva para viver saudavelmente. Caso contrário, o passado funciona como uma algema, aprisiona quem não deslembra. A memória onipresente dificulta que vivamos o momento atual de forma intensa, enquanto o esquecimento nos liberta dos grilhões do passado doloroso.
Conscientes disso e de que a linguagem “força a realidade a se manifestar e escava as profundezas da condição humana”, como quer o poeta, romancista e médico alemão Alfred Döblin, a junta poética examinou a alma de Rubens, sepultado no cemitério Recanto da Paz, em Iranduba, na quarta-feira (8). A “necropsique” poética contestou a necrópsia médica com um relatório veraz e contundente que contradiz a certidão de óbito, segundo a qual Rubens “não deixa testamento, não deixa bens, era solteiro, não deixa filhos e não era eleitor”, omitindo que ele deixa muitos amigos.
O broeiro
Solteiro, Rubens era porque a Zilá não quis casar com ele. Eleitor, sim, votava na gloriosa 41ª seção da 2ª Zona conhecida como “urna dos malucos”, que funciona na Escola Estadual Cônego Azevedo. Bens, deixou muitos, embora nenhum deles material. Filhos certamente: perfilhou os sobrinhos Mônica, Thayara, Ricardo, Alexandre e Paulino, que herdaram dele carinhos e benquerenças. Aos amigos legou pedaços da infância inesquecível: peladas nos becos do bairro, papagaios empinados, banhos de igarapé, jogo de bolinha de gude com caroço de tucumã e até mesmo uma briguinha aqui e ali, que ninguém é de ferro. O laudo poético lembrou os bardos da Irlanda.
Dizem, dizem, não sei, que na Idade Média os trovadores irlandeses protegiam os campos de trigo e cevada declamando poemas aos ratos. Essa é uma bela metáfora: espantar os ratos com poesia. Foi assim que os poetas amazonenses Aldísio e Pucú procederam, quando fizeram a “necropsique” de Rubens, restabelecendo essa verdade, da qual sou testemunha ocular.
Rubens de Lima Pereira e eu nascemos no mesmo ano: 1947. No mesmo dia: 18, mas em meses diferentes. Canceriano eu. Sagitário ele. Convivemos na infância, quando ele percorria becos, vielas e ruas vendendo broas, com um pregão inconfundível e único, só dele. Por isso, virou Rubem, no singular. Depois, foi-lhe acrescentado um apelido: “Rola”, porque quando o aperreavam muito, colocava a dita cuja pra fora da calça, balançando-a pra lá e pra cá, mas nunca em presença de donzela, por razões de respeito.
Testemunhas idôneas asseguram que a única moça que viu a coisa balançar – e nunca se queixou – foi a Zilá, irmã do Guilherme Porca Vadia. Mas isso são segredos que ninguém revela, nem sob tortura. O importante é que o bairro entendeu que mais vale uma rola na mão do que duas frutas voando e trocou o Rubens, lima e pera, por Rubem, no singular. Ficou, pois, Rubem Rola.
Os doidos do bairro
Desde o ano passado – me informa sua sobrinha Mônica – a esquizofrenia e os problemas no intestino se agravaram com a pandemia. Por isso, em outubro, ela largou tudo, deixou a cidade Presidente Figueiredo, onde mora, para dar assistência ao tio enfermo em Manaus, se revezando com outros sobrinhos e sua tia Fátima.
Há três semanas, diante de sua situação crítica, a família decidiu interná-lo na UTI do hospital 28 de agosto. Ele se alimentava por sonda e tinha ainda sonda na uretra e sonda retal. Na terça (7), ela foi ao hospital pegar o lençol de cama para lavar e, ao lado do seu irmão Ricardo, presenciou o último suspiro do tio, que completaria 74 anos agora, uma semana antes do Natal. No velório, compareceram alguns amigos fiéis: a Cleide, neta da Leonor, com o Mozão, Santinha Reis com o filho Marcelo, seu Durval e dona Luziete Cordeiro, Raul Paixão e o presidente da Associação Comunitária do Bairro de Aparecida, Wander dos Reis, entre outros.
Brincalhão, pacato e generoso, as crianças adoravam o Rubirola que, aposentado pela Escola Estadual Solón de Lucena, onde era auxiliar de serviços gerais, comprava bolachas e guaraná para elas. Ele não tinha problemas em confirmar a imagem que os moradores tinham dele, quando de sacanagem alguém provocava:
– Rubirôla, quem são os doidos do bairro?
Sem qualquer modéstia, ele se colocava como o primeiro da lista:
– Eu … o Jaú , a Ana Careca, o Solaninho, o Raimundo Mucura…
Esse Rubem Rola usava a metáfora da loucura só pra poder dizer algumas verdades que ninguém queria ouvir. Mas por via das dúvidas, tomava remédio controlado, administrando sua maluquez, misturada com sua lucidez. Incluía entre os doidos alguns amigos:
– O Babá é maluco, cara! Passa pela ponte Rio-Niterói todo dia, se aquela porra cair, quero ver neguinho poliglota, que ensina inglês pros índios, pedindo penico.
Há meses sem notícias dele, confesso que esperava o recado que costumava mandar sempre em dezembro através do Tuta, meu irmão e seu vizinho:
– Diz pro Babá botar meu nome no Diário do Amazonas.
Embora desta vez o recado não tenha chegado, registro aqui mais uma vez seu nome: Rubens de Lima Pereira, o Rubi-Rôla, com quem eu compartilhava idade, aversão por sapatos e desconfiança de sujeitos normais, conforme registrado em crônica de 2005 “Meu amigo Rubi-Rôla”.
P.S. Mesmo sem procuração, agradeço em nome do bairro a dedicação das sobrinhas, sobrinhos, enfermeiras e enfermeiros do Hospital 28 de agosto e em especial do médico Raimundo Pereira de Sá Neto, que acompanhou as últimas semanas daquele enfermo que morria de Aparecida.