RIO DA DÚVIDA

Inauguração do marco do rio Roosevelt, antigo rio da Dúvida. Da esquerda para a direita, George Cherrie, naturalista americano, Ten. Lyra, Cap. Médico Dr. Cajazeira, Roosevelt, Rondon e o engenheiro Kermit, filho de Roosevelt | João Salustiano Lyra/ Museu do Índio/Funai

Por Ribamar Bessa.
Esta história que vos conto dá enredo de escola de samba. Do grupo de acesso D. Conheci o bisneto do presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, há exatamente vinte anos, no dia 19 de fevereiro de 1992. Nós dois – um pelo lado americano e o outro pelo brasileiro – éramos os historiadores da equipe que ia refazer uma viagem exploratória realizada em 1914, quando o bisavô dele e o então coronel Cândido Mariano Rondon desceram um rio encachoeirado que nasce em território dos índios Cinta-Larga, na Chapada dos Parecis, e que, naquela época, nem constava no mapa.
Tweed Roosevelt – esse é o nome do bisneto – era homem de negócios que atuava na Bolsa de Valores. Mexia com finanças, investimentos, bufunfa, money. Nas horas vagas escrevia a biografia do bisavô. Com outro gringo, Charles Thomas Haskell, jornalista aposentado e mergulhador profissional, concebeu o projeto de percorrer, quase 80 anos depois, os caminhos da expedição que navegou 1.500 quilômetros. Eles contavam agora, para isso, com 500 mil dólares.
O objetivo declarado da viagem de 1992 era recuperar a memória da expedição de 1914 e coletar dados que permitissem avaliar as alterações da flora e da fauna na região nessas quase oito décadas. Durante dois meses, pesquisadores iriam observar padrões de colonização, situação das populações indígenas, modificações ambientais, distribuição e diversidades das espécies animais e vegetais. Depois, fariam um livro bilíngue português x inglês e um filme. Nós dois, Tweed e eu, éramos os cronistas da aventura.
A expedição
Bom, o meu parceiro Tuíde, se me permitem assim chamá-lo na intimidade, aniversaria no final de fevereiro e ia completar 50 anos no meio da selva amazônica. Trazia no seu currículo o fato de ser bisneto do homem. E eu? O que eu tinha a ver com essa história? Como é que entrei nesse barco? Como Pilatos no Credo.
Foi assim. Os gringos queriam refazer a expedição, mas esqueceram de incluir nela cientistas brasileiros. Pode, Arnaldo? Não, a regra é clara! O Decreto 98.830/90 que regulamenta atividades de pesquisa de campo de estrangeiros no Brasil exige a participação obrigatória de brasileiros nesse tipo de atividade. Por isso, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) brecou a expedição, exigindo o cumprimento da cláusula citada.
Dois respeitáveis cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) foram chamados: João Ferraz e Geraldo Cabral. No entanto, o CNPq exigiu mais: a presença de um historiador brasileiro. Onde encontrá-lo? Corre daqui, corre pra lá, descobriram na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) uma pesquisa cadastrada sobre a Expedição Rondon-Roosevelt, coordenada por um obscuro professorzinho que orientava o trabalho de três bolsistas – Helena Cardoso, Lígia Castro e Carla Balthar.
O obscuro professor era esse filho aqui da dona Elisa, que foi chamado às pressas para um almoço no Rio Caesar Park Hotel, com Tweed Roosevelt e o casal Charles Haskell e Elizabeth McKnight, hospedado no apartamento 708, conforme minhas anotações da época, consultadas para escrever o texto que você está lendo agora.
Posto que meu inglês é macarrônico, a nossa conversa foi feita em francês e ai eles macarronavam mais do que eu. Só depois fiquei sabendo da notável coincidência e de como a história se repete. Acontece que Rondon também não falava inglês, Roosevelt não entendia bulhufas de português e os dois acabaram se comunicando num francês cachorri très jolie.
No almoço, os gringos, querendo me impressionar, disseram que o embaixador americano tinha audiência marcada com o então presidente Collor para cobrar apoio oficial à Expedição. Sei lá se era verdade! O certo é que no dia 20 de fevereiro já estávamos em Manaus, onde apresentamos o projeto no auditório Rio Jatapu, do ICHL, Universidade Federal do Amazonas. Lá estava eu ao lado dos gringos, todos eles vestidos de branco, e do historiador Luís Bitton, que era o coordenador regional do IPHAN, vestido de preto.
O que mudou
A expedição estava programada para sair no final de fevereiro de Vilhena (RO), onde o rio nasce, e terminar, em abril, em Novo Aripuanã (AM).Para isso, a empresa New Century Conservation Trust Inc havia providenciado tudo: canoas infláveis, motores de popa, cadernetas de campo write-in-the-rain impermeáveis, estojo médico, espingarda de caça de cano duplo calibre 12, pistola magnum 357, telefone para comunicação via satélite, antena, caixa de equipamento e bateria, emissor de sinal de emergência, GPS, radiotransmissores portáteis e até geradores de gasolina.
Nesses dois meses, nada de peixe, farinha, pimenta murupi. Só comida de astronauta e festifude enlatado. Aquilo me deixou cabreiro. Ainda por cima os gringos queriam que os meus gastos de viagem fossem cobertos por uma instituição brasileira. Desisti. Fiz aquele gesto americano de OK – a tradução mais perfeita de “taquiprati” – e pulei fora do barco. Fui cuidar da minha vida na universidade e da pesquisa nos arquivos. Voltei pro Rio, eles foram pra Rondônia. Na despedida, fizemos promessas mútuas, jamais cumpridas, de que trocaríamos informações sobre documentos consultados.
Das duas expedições, o relato da primeira, de 1914, é bastante detalhado. Além dos escritos de Rondon, tem um livro de Roosevelt, cujo título em português é “Nas Selvas do Brasil”. Lá, ele conta que a viagem durou dois meses, percorreu um rio perigoso e traiçoeiro que tragou cinco das sete canoas. A expedição passou 48 dias sem ver um único ser humano. Enfrentou piuns, carapanãs, abelhas, mutucas, formigas de fogo, cobras. Dois membros da expedição – brasileiros – morreram durante o trajeto.
Nessa aventura, a expedição de 1914 coletou farto material sobre mais de 2.500 aves, cerca de 500 mamíferos, inumeráveis répteis, batráquios e peixes, muitos dos quais desconhecidos da ciência ocidental. Seu principal feito, no entanto, foi colocar no mapa da Amazônia um rio – o Rio da Dúvida – que não se sabia se era afluente do Tapajós ou do Madeira. Os índios conheciam seu percurso, mas essa informação estava codificada em línguas indígenas nas quais a sociedade brasileira era analfabeta.
A dúvida foi, enfim, desfeita com a Expedição, que descobriu se tratar do principal afluente da margem direita do Rio Madeira. O rio foi rebatizado como Rio Roosevelt. Esse foi o resultado da viagem original.
E a reconstituição da expedição em 1992? Bem, os gringos, que haviam prometido mundos e fundos, nos deixaram apenas os mundos e ficaram com os fundos. Não me interessei em saber se eles publicaram algum livro ou fizeram algum filme. O Charles Haskell morreu em 1998, com 55 anos. O Tweed, que continua vivinho da silva, agora com 70 anos, declarou num documentário para a TV que na região percorrida, no intervalo de 80 anos “nothing had changed and everything had changed”. Sinceramente, precisava gastar 500 mil dólares para tal conclusão?
Ah, antes que me esqueça: com todo o respeito, sem querer ofender, mas o Tweed tinha cara de leso. A foto dele nos jornais de Manaus de 21 de fevereiro de 1992 não deixa lugar a dúvidas. Mas era só a cara, porque ele foi ativista nos protestos contra guerra do Vietnam e esteve no festival de Woodstock, em 1969. Não se sabe se lá fumou um baseadinho ou se, como o Bill Clinton, fumou, mas não tragou. Essa é a dúvida, que até hoje não foi desfeita. Rio da dúvida?

 (*) Ribamar Bessa é escritor, professor e jornalista.