Questões fiscais, em qualquer país, são temas inevitáveis de campanhas eleitorais, pelo que repercutem sobre o nível de extração de recursos da sociedade e sobre a capacidade de o Estado prover investimentos, serviços e assistência a pessoas.
No Brasil, a pièce de résistence do debate fiscal tem sido a reforma tributária – expressão mágica que, ao pretender mitigar todos os problemas, estimula grandes esperanças e inventividades, ao mesmo tempo em que, infelizmente, provoca enormes frustrações. Para compreender essa reversão de expectativas, é necessário dedicar alguma atenção à natureza dos sistemas tributários.
Modelos tributários são intrinsecamente imperfeitos, porque resultam de tensões políticas, que não necessariamente reproduzem concepções abstratas ou princípios doutrinários. Sua complexidade traduz a complexidade da estrutura de relações políticas, econômicas e sociais de um país. De resto, tendo em conta que as tensões políticas são permanentes e focalizadas, a tendência de cada solução tributária é degradar-se ao longo do tempo.
A imperfeição e a complexidade associadas à tendência entrópica e à mudança das circunstâncias, que envolvem um determinado sistema tributário, fundamentam o conceito de reforma como um processo permanente e não como um acontecimento isolado. É equivocado, portanto, esperar “a reforma tributária”, não fosse também razão para recorrentes ilusões.
Amplificar o espectro de uma reforma tributária significa tão somente maximizar as tensões políticas, com efeitos irremediavelmente paralisantes. Grandes reformas somente acontecem em condições excepcionais, verificáveis, por exemplo, em regimes autoritários ou em países sem tradição tributária. Foi o autoritarismo pós-64 que possibilitou, no Brasil, a implantação da reforma de 1965-67. A adoção, no Leste Europeu, do flat tax, polêmico e revolucionário regime de tributação da renda, só se tornou viável porque inexiste tradição tributária nos países daquela região.
Na mesma linha de raciocínio, pode-se entender que a via constitucional é um caminho extremamente perigoso para realizar mudanças tributárias. A já excessiva densidade de matéria tributária na Constituição – aliás, recorde internacional – produz infindáveis demandas e preocupante insegurança jurídica.
Alterações constitucionais têm um extraordinário custo político. Abrem, igualmente, espaço para introdução de privilégios ou elevação dos níveis de complexidade e desorganização do sistema tributário. Esse entendimento é facilmente corroborável em todas as mudanças realizadas desde a implantação da reforma de 1965-67. Hoje temos um sistema, ao menos conceptualmente, pior do que o que tínhamos naquela década. A propósito, cogitar de uma assembléia constituinte exclusiva para reformar o sistema tributário brasileiro é uma temeridade que se aproxima da irresponsabilidade.
A ruptura do impasse tributário brasileiro importa compreender, desde logo, as especificidades das demandas por reforma tributária e seu subseqüente encaminhamento. Os Estados e Municípios desejam aumentar sua participação nas rendas públicas nacionais; os contribuintes, especialmente o empresariado, almejam a redução da carga tributária; por fim, os especialistas perfilham a melhoria da qualidade do sistema, ainda que inexista consenso quanto ao que deve ser objeto dessa melhoria. Cuidar desses três temas, simultaneamente, é certeza de fracasso.
Discussões sobre partilha de rendas entre os entes federativos, em virtude do seu elevado conteúdo político, fulminam debates sobre qualquer outro tema tributário. Reestruturar o federalismo fiscal brasileiro, incluindo a discriminação de rendas e a repartição de encargos, é matéria extremamente sensível e somente poderia prosperar em âmbito exclusivo.
A pretensão de reduzir a carga tributária remete a um debate sobre a natureza do Estado brasileiro e seus encargos. A menção de que temos a maior carga tributária dentre os países com mesmo grau de desenvolvimento jamais inclui a constatação de que também temos o mais elevado nível de gastos públicos. Abordar essa questão implica tratar de políticas gerais de pessoal, participação da iniciativa privada nos investimentos públicos, instituição de parâmetros obrigatórios de eficiência na administração pública, revisão das políticas assistenciais e, sobretudo, construção de um modelo previdenciário consistente. Nada disso é simples, pois nenhuma despesa é órfã e sempre será justificada bravamente pelos seus beneficiários, independentemente de qualquer juízo valorativo.
O caminho para melhorar a qualidade do sistema tributário deveria fundar-se em uma metodologia centrada na solução de problemas prioritários, preferencialmente pela via infraconstitucional. Incluem-se nessa agenda a eliminação da guerra fiscal do ICMS e do ISS, a redução dos créditos acumulados nas operações de exportações, a instituição de programas de desburocratização fiscal, a simplificação do ICMS e do PIS/Cofins, o disciplinamento da substituição tributária, a diminuição da volatilidade das normas tributárias, a desoneração dos investimentos e a ampliação dos direitos dos contribuintes. Como se vê, não é pouco, nem fácil. Pode ser, todavia, um caminho realista.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal