O Estado brasileiro, desde sempre, tem características marcantemente autoritárias, que restringem o espaço da cidadania. Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”, ao qualificar o Brasil como uma “Rússia Americana”, já salientava o fascínio que um “governo másculo e corajosamente autocrático” exerce sobre o povo.
Nesse contexto, os movimentos ditos sociais representam uma espécie de válvula de escape para o represamento da cidadania. Ao dar curso a essa atitude de fundo libertário, eles, infelizmente, recorrem ao nonsense das invasões ilegais e das violências perpetradas contra os patrimônios público e privado.
Um exemplo singelo do traço autoritário se percebe nos privilégios processuais concedidos à Fazenda Pública, quando parte integrante de litígios judiciais. Não se alegue a supremacia do interesse público, porque o reconhecimento dessa alegação cai por terra quando se sabe que a outra parte não dispõe dos mesmos recursos postos à disposição do Estado. Tal desequilíbrio constitui evidência de uma sociedade de súditos.
O viés autoritário serve de pano de fundo para abusos praticados por agentes públicos. A vigente legislação dos crimes por abuso de autoridade (Lei nº 4.898, de 1965) é anacrônica e de má qualidade, porquanto estruturada em tipos penais abertos de difícil aplicação. Sancionada no governo militar, parece que foi concebida mais para proteger do que coibir o abuso.
A inexistência efetiva de limites para exercício da autoridade enseja práticas deploráveis, como as prisões vexatórias que desonram a imagem do preso, a injustificada liberalidade nas invasões de privacidade (escuta telefônica e acesso a informações protegidas por sigilo), a miséria do tratamento dispensado à população carcerária (maus-tratos, tortura, assédio moral, convivência forçadamente promíscua, perpetuação da prisão provisória, etc.).
As situações detectadas pelos mutirões carcerários (meritória iniciativa do CNJ) depõem contra os requisitos mínimos da condição humana. É inimaginável, como se constatou, que existam pessoas detidas há mais de dez anos, com base em prisões provisórias. São verdadeiros “intocáveis” (dalits) das castas carcerárias, aos quais repugna a ação do Estado e exemplifica a tese do abuso por omissão.
A essas, lamentavelmente, se associam outras formas de abuso. Não é razoável instaurar procedimentos de investigação por motivação pessoal ou política. É inaceitável dar início à persecução penal ou administrativa, sem justa causa fundamentada. É inadmissível exigir informação ou cumprimento de obrigação, sem expressa fundamentação legal. Integra, ainda, esse universo de perversões a cobrança de tributos sem a observância do devido processo legal.
Esses exemplos, que não esgotam o tema, fazem parte do cotidiano brasileiro. Hoje, às vítimas desse silente terrorismo de Estado nada ou quase nada resta fazer, por conta de uma legislação inepta e dos obstáculos ao exercício da ação privada subsidiária.
Há uma luz de esperança, entretanto. Tramita, no Congresso Nacional, projeto de lei, elaborado no âmbito do Comitê Gestor do II Pacto Republicano, sob a liderança do jurista Rui Stoco, e apresentado pelo Deputado Raul Jungmann, que pretende dar um contorno republicano à matéria. Quem sabe, não seria esse um passo em direção a uma sociedade de cidadãos?
Everardo Maciel é ex-Secretário da Receita Federal