Por Ribamar Bessa:
“Hay seres con el privilegio sobrenatural de volver a los sitios de sus afectos.
(…) Se dice entonces que esa persona está “recogiendo sus pasos”.
(Garcia Márquez – Las últimas horas de Jaime Bateman – 1983)
Rincão das Jaboticabas, no vale da Maria Comprida, na Serra das Araras, onde fui escondido durante uns quinze dias, em 1967, para fugir da polícia. Nunca mais havia voltado lá. Retorno agora, meio século depois, para conferir as lembranças, numa operação que no Caribe – nos diz Garcia Márquez – é denominada de “recoger sus pasos”, quando o velho, antes ou até mesmo depois de morrer, regressa aos lugares de suas querenças, catando vozes, suspiros, cheiros, risos e queixumes, imagens e cenas que por lá ficaram. Recompõe assim suas mais íntimas recordações. Conto aqui os passos que foram dados e como foram recolhidas as marcas no chão. Foi assim.
Os passos dados
Policiais do DOPS andaram me buscando, em dezembro de 1967, na redação do jornal O SOL, na rua Tenente Possolo, por entrevista feita com o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda – “o Corvo” – um dos articuladores civis do golpe de 1964. Ele queria obcecadamente ser presidente da República e, quando os generais lhe deram uma rasteira suprimindo a eleição direta, passou a fazer oposição à ditadura. Criou, então, a Frente Ampla e buscou aliança com os dois ex-presidentes cujas vidas infernizara: Jango, exilado no Uruguai, e Juscelino, em Lisboa.
A entrevista foi feita por acaso. Eu tinha 20 anos, era um obscuro foca de um diário que inicialmente saía como encarte do Jornal dos Sports. Fui escalado em pleno período natalino para cobrir a noite de autógrafos do livro “Recordações de um Desterrado” do diretor da Tribuna da Imprensa, Hélio Fernandes, que ficara um mês preso na ilha Fernando de Noronha, por publicar artigos contra a ditadura. Dispensaram-me de voltar ao jornal naquela noite de segunda-feira, porque a edição de terça já estava praticamente fechada, a matéria só seria publicada na quarta.
Eis que, de repente, chega na Livraria Eldorado, que estava entupida de gente, ELE, Carlos Lacerda, ovacionado ali como “o futuro presidente da República” pelas “candocas”, as senhoras da CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia, que eram as “paneleiras” da época. No meio do burburinho, arranquei uma entrevista exclusiva. Lacerda, que abicorava o Palácio do Planalto, em postura inusitada para alguém cúmplice e subserviente ao imperialismo dos Estados Unidos, disparou a metralhadora giratória e mandou bala como se estivesse no palanque de um comício que a ditadura não permitia realizar:
– “Quero derrubar o regime fascista do Brasil, porque ele está podre e não aguenta dois anos. A baioneta e o dólar que o sustentam também cairão”.
Corri eufórico para a redação. Os editores Ana Arruda e Reynaldo Jardim decidiram interromper a impressão do jornal e encaixar na primeira página todo o texto da entrevista, o que não era usual. “VOU DERRUBAR ÊSSE GOVÊRNO” – berrou a manchete com dois circunflexos hoje dispensáveis. Como a matéria foi assinada, a polícia me procurou no dia seguinte “para averiguações”. Amigos recomendaram que eu me escafedesse por um tempo.
Eu me escafedi. O meu cafofo foi o sítio da família da Núria, uma querida amiga da faculdade, com quem compartilhava sonhos alados. Seu pai, o renomado médico e psicólogo Emilio Mira y Lopez, ex-chefe dos serviços psiquiátricos do Exército Republicano Espanhol, falecera três anos antes. Quem organizou minha estadia foi a mãe, dona Alice Madeleine, enfermeira uruguaia. Quando desci a serra duas semanas depois, estava desempregado: O SOL entrara em ocaso. Foi fechado. A baioneta e o dólar permaneciam firmes e fortes, quem caiu em seguida foi o próprio Lacerda, cujos direitos políticos foram suspensos por dez anos, com a Frente Ampla definitivamente proscrita. Morreu politicamente com o veneno que ministrou a outros.
As marcas no chão
Cinco décadas depois. Reencontro Emílio, irmão caçula de Núria, agora médico formado pela UFRJ, que trabalhava como clínico geral no Hospital da Lagoa. Retrocedemos a 1967, quando lutávamos contra os acordos MEC-USAID, que pretendiam privatizar a escola pública e instituir o ensino pago. Numa passeata, a irmã de Emílio teve a perna ferida por estilhaços de bomba da polícia. Ele ainda secundarista e líder do Grêmio do Colégio de Aplicação da UFRJ, em companhia do seu amigo Agenor, retornou para recuperar meus óculos, que perdi na correria, ficando como cego em tiroteio. Esse seu gesto solidário ligou para sempre as nossas lembranças.
Na continuação da nossa conversa, cada um foi recolhendo os próprios passos. Emílio preso durante 42 dias, em 1971, no Quartel da Barão de Mesquita, acusado de militar no MURD – Movimento Universitário de Resistência à Ditadura. A faculdade, a formatura, em 1974, na qual foi o orador, a residência médica, o Hospital-Escola São Francisco de Assis, os cursos na Califórnia, a acupuntura, a medicina chinesa, a irmã migrando para o Paraná, as mortes de sua mãe e de Rafael, seu irmão. Da minha parte, resumi andanças por vários países, o exílio, o retorno, a prisão, as amizades, os amores, a vida acadêmica, os alunos, os índios, especialmente os guarani, as três netas.
Caminhamos por uma estrada de 50 anos quilometrada pelo tempo, até chegarmos ao pedágio do “Fora Temer” e à encruzilhada do “Viva a Uerj”, onde agora nos encontramos. Soube, então, que o Rincão das Jaboticabas continua com a família, sob os cuidados do Emílio. Não resisti ao convite para revisitá-lo. Fui. Subi a serra com o coração aos pulos, levando por precaução, como escudo, duas netas na visita àquela casa bem-assombrada, onde íamos passar três dias.
Na lembrança, depois de tanto tempo, o que ficou da casa, além da supimpa geleia caseira de jaboticaba, foi a imagem da biblioteca construída com pinho de Riga, tendo ao fundo uma lareira. Foi lá onde eu me encafifei em 1967. De lá só saía para a cozinha na hora das refeições compartilhadas com o caseiro e para o quarto de dormir. Passava o dia ouvindo MPB e especialmente músicas da guerra civil espanhola, e lendo Garcia Lorca, Alberti, Antônio Machado, cercado por fotos de dona Alice e do velho Emilio, que me olhava através das fotos e que ali estava – agora eu sei – recolhendo ele também seus próprios passos.
A casa da minha lembrança era uma, era aquela que abrigou o CPC da UNE, quando o velho Emílio era vivo e aonde Vianinha escreveu grande parte de sua peça “Rasga Coração”. E a outra, a atual, a que encontrei? Ainda continuam lá os mesmos livros, que migrarão brevemente para a biblioteca da Uerj. As fotos também, assim como a mesa usada por Vianinha. Mas cadê os discos de vinil? O tempo, esse gato guloso, comeu. Posso jurar, no entanto, que de noite, enquanto minhas netas dormiam, eu ouvi o ranger das tábuas do piso do corredor, por onde caminhavam Sidney Miller e Nara Leão entoando “A estrada e o violeiro” e Carmela, a atriz de teatro que enfrentou os fascistas, cantando com o punho levantado:
– El Ejército del Ebro / rumba, la rumba la rumbabá /
una noche el rio pasó / ay Carmela, ay Carmela /
Y a las tropas invasoras / rumba, la rumba la rumbabá
buena paliza les dió, ay Carmela, ay Carmela.
A música nos ensina que “nada pueden bombas donde sobra corazón”. Na busca de rastros antigos, acabei ensaiando novos passos, que deixaram marcas recentes. Lá ficam, agora, as pegadas das minhas netas. A companhia delas me permitiu ver o que a memória apagara: a vida fluindo, um jardim ensolarado com muitas árvores frutíferas, plantas, flores, uma piscina, passarinhos, borboletas, tucanos que volateiam com pontualidade britânica sempre no mesmo horário, entre montanhas, uma delas a Maria Comprida, deitada, coberta de nuvens que a vestem com o véu de noiva, além de algumas sementes de esperança renovada.
Cadê a utopia do homem novo imaginado pelo Che? A casa, que abrigou tantos sonhos, não tem porão. Certamente lá o poeta amazonense Ernesto Penafort (1936-1992), que também participou da aventura do jornal O SOL, encontraria o que recolher, mas aí não teríamos seus versos belos e melancólicos, com os quais, para fazer um contraponto, aqui me despeço:
“Dos passos que foram dados / nem marcas restam no chão./
E de seus sonhos alados? / Nem as asas restarão /
Pois foram todos sonhados / No espaço de um porão”.