Everardo Maciel critica contatos informais da entidade com a Lava Jato e defende decisão de Toffoli que suspendeu investigações
Folha de São Paulo, 22.ago.2019 , por Felipe Bächtold
Secretário da Receita Federal de 1995 a 2002, Everardo Maciel é crítico da maneira como o órgão participa hoje de investigações como a Lava Jato.
Ele diz que a cooperação com investigadores tem ocorrido de maneira cada vez mais informal, o que pode resultar em abusos.
No último domingo (18), a Folha mostrou que, segundo mensagens obtidas pelo site The Intercept Brasil, a equipe da Lava Jato driblou a lei para ter acesso a dados da Receita.
Em um dos diálogos, de 2016, o procurador Deltan Dallagnol sugere que colegas peçam para o auditor Roberto Leonel “dar uma olhada informal” no Imposto de Renda do caseiro de um sítio frequentado pelo ex-presidente Lula.
Maciel, 72, diz que prefere não comentar especificamente o teor dessas mensagens. Mas afirma que o contato entre diferentes órgãos precisa ser completamente formalizado e que a Receita precisa esperar o fim de processos administrativos internos para alertar sobre a ocorrência de crimes.
Em entrevista à Folha, ele disse que há um risco de se criar “instâncias muito personalizadas, não republicanas”.
Maciel também é favorável à decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, que barrou em julho o uso, sem autorização judicial, de dados detalhados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) em investigações e processos.
Cooperação com a Receita
Não pode haver contato sem completa formalidade institucional entre os órgãos públicos e a Receita. A operação se dá em dois sentidos: da Receita para outros órgãos, inclusive Ministério Público, ou de outros órgãos, incluindo Ministério Público, para a Receita.
Receita Federal
A Receita é um órgão de fiscalização de tributos. No curso de uma fiscalização tributária, pode encontrar indícios de crime contra a ordem tributária. Para que esses indícios sejam materializados, que se convertam em objeto de uma investigação, é preciso que atravessem toda a fase de um processo administrativo-fiscal.
Se, ao final do processo administrativo-fiscal, for confirmada [uma ilegalidade], a Receita então faz uma representação fiscal para fins penais. Toma aquilo e encaminha para o Ministério Público. Isso está consagrado em lei.
Por que tem que esperar? Porque mais adiante o próprio órgão de julgamento da Receita pode dizer: não houve infração e, por consequência, não houve crime.
Também pode um órgão solicitar informações à Receita. Essas informações são transferidas a esse órgão, sob a proteção do sigilo fiscal. O sigilo fiscal é transferido da Receita para o órgão.
O relacionamento tem que ser estritamente institucional.
Sigilo
Nenhum tipo de ação, ou Lava Jato ou qualquer que seja ela, por necessidade de agir com rapidez, autoriza a quebra do relacionamento institucional. Nenhum. Está ali em curso a privacidade das pessoas, e isso é um bem protegido pela Constituição.
Não é assim: joga a rede para pescar. Se estou examinando caso de Fulano de Tal, [preciso dizer à Receita:] quero as informações tais e tais para dar curso à investigação que estou fazendo. Todas as informações devidamente qualificadas sob o manto do sigilo, e então transferidas.
Relacionamento com procuradores
[A Lei das Organizações Criminosas] não autoriza uma cooperação fora dos limites formais. Isso não pode ser uma matéria de pessoas, tem que ser institucional.
Não pode ser assim: o auditor Fulano de Tal, conversando com o auditor Sicrano. Naquele instante, o procurador vai falar pelo Ministério Público, e o auditor, quando responder, vai responder pelo Fisco.
‘Dar uma olhada informal’ [como consta em mensagens da força-tarefa da Lava Jato no aplicativo Telegram] não existe. Ninguém olha informalmente isso. Mesmo porque o acesso aos sistemas da Receita tem que estar todos eles registrados, sob pena de evidenciar um acesso imotivado.
Não pode simplesmente dizer assim: estou fazendo uma coisa aqui, é a mais meritória do mundo, vou salvar o Brasil, ligo para um auditor e digo: “Dá uma olhadinha aí’.
Não é assim. É um grau de informalidade descabido com o necessário tratamento entre as instituições. Por qual razão? Porque fica perigoso. Institui o abuso. Se começar um nível de relacionamento informal, é desastroso, completamente inconveniente. Não é criar uma burocracia, obstáculos.
Tensão da Receita com o STF
Há microrrupturas institucionais. São pequenas coisinhas que vão quebrando a formalidade. Uma barragem não se rompe instantaneamente, vai rompendo aos poucos em um processo de desgaste.
Quando começa a desgastar o respeito institucional, a harmonia entre os Poderes, vai criando uma cultura de desrespeito, que desfavorece o bom funcionamento das instituições. Eu fico horrorizado.
São guerras institucionais todos os dias. Isso me deixa muito desalentado.
Um Poder desrespeita o outro. É uma tensão institucional permanente e isso não ajuda o país. Porque cria um clima de insegurança generalizada.
Uso de dados do Coaf em investigações
O Coaf nesse sentido tinha que ser uma instituição passiva. Não é assim: “Estou olhando o pessoal que está na Lava Jato”. Precisa da supervisão judicial. [A decisão do Supremo] sem dúvida está correta.
[O Ministério Público] está querendo que os outros apurem para ele. É dizer assim: vai lá e faz o serviço para mim. É querer que o outro faça o trabalho para ele.
Se no meio da investigação, encontra algo que precise de uma informação de natureza fiscal, peça à Receita. Querem [algo] como: faz uma pescaria lá, vê se encontra algo para mim. Não é assim, né?
Possibilidade de fatiamento de atribuições da Receita
Vi ideias de “autarquizar” a Receita, isso é uma maluquice. Segregar funções de fiscalização, de política tributária. Seria estraçalhar a Receita em um momento delicado do equilíbrio fiscal.
As pessoas fazem as coisas sem ver as consequências. Não se pode estar trabalhando em uma instituição e dizer que vai haver uma divisão da instituição em duas partes.