Supunhetamos, leitor (a), que você é jornalista e recebe pelo Correio um dossiê com comprovantes indicando que o ex-governador Paulo Maluf (ou o prefeito de uma capital do norte do país) roubou 50 milhões de dólares e depositou tudo num paraíso fiscal. Os documentos – você percebe logo – foram grosseiramente falsificados. O que você faz? Joga tudo no lixo ou, ignorando a fraude, publica seu conteúdo como se fosse informação correta?
Essa pergunta feita no primeiro dia de aula sempre gerava polêmica no Curso de Jornalismo entre alunos da disciplina Ética e Legislação na Mídia que ministrei durante anos seguidos na Universidade Federal do Amazonas e, depois, na UERJ.
De um lado, estudantes mais afoitos justificavam: “O dossiê é falso, mas nos faz chegar a uma conclusão verdadeira: a de que Maluf é ladrão. Portanto, devemos publicá-lo, porque assim estaremos escrevendo certo por linhas tortas. No frigir dos ovos, o uso dessa mentira acaba deixando o leitor com a informação certa”.
Embora igualmente antimalufistas, outros alunos mais escrupulosos discordavam. Diziam: se existe desconfiança de que Maluf é um ladrão de casaca – e as evidências são muitas – o repórter deve procurar provas do delito. Esse é o trabalho do jornalismo investigativo, que deve apresentar fato por fato e não vender fato por lebre. Inventar ou aceitar provas forjadas mesmo contra o pior crápula não é jornalismo. Quem renuncia à apuração dos fatos, engana os leitores, é um profissional incompetente e imoral.
Esse parece ser o caso dos jornalistas da VEJA Leonardo Coutinho, Igor Paulin e Júlia de Medeiros que na semana passada assinaram uma reportagem encomendada intitulada “A Farra da antropologia oportunista”. Com uma diferença: como o dossiê falso não lhes foi remetido pelo Correio, eles saíram à caça não dos fatos, mas da lebre. O que nos faz pensar que aí tem dente de coelho.
Eles juram – mas não querem ver suas respectivas mães mortinhas no inferno se estiverem mentindo – que durante um mês visitaram onze municípios em sete estados, percorreram mais de 3.000 quilômetros de carro e barco e entrevistaram setenta pessoas em busca de fatos. Encontraram lebres. Não viram nem conversaram, por exemplo, com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, mas registraram declarações que ele nunca deu e que são exatamente o contrário de tudo aquilo que escreveu.
Mentiram pra cacete. Nem sequer uma vírgula ou um ponto de exclamação da matéria são verdadeiros. É tudo lorota! Entrevistas inventadas, números manipulados, informações fantasiosas, dados falsos, provas forjadas, fabricação de fatos – tudo isso a troco de quê? Só a questão da luta pela terra pode ajudar a explicar tamanha agressão aos fatos e tanta falta de pudor.
Terra à vista
Desde o grito dado por Cabral, tudo se resume à briga pela terra. Durante quase cinco séculos, armados até os dentes, os colonizadores, os bandeirantes, as frentes expansionistas invadiram, saquearam, pilharam, usurparam, deceparam e ocuparam os territórios indígenas, sempre protegidos pela lei do mais forte. No entanto, em 1988, com o processo de redemocratização, a Constituição – lei maior do país – deu um basta a essa violência que passou a ser ilegal, quando cometida.
O novo pacto funciona mais ou menos assim. É como se o Estado dissesse aos índios: vocês perderam 87% de seus territórios e não é mais possível recuperá-los. O que perderam, perdido está. Nós nos comprometemos, porém, de que a partir de agora ninguém mais tirará aquilo que sobrou. Daqui pra frente, tudo vai ser diferente, o brasileiro vai aprender a ser gente, respeitando as terras dos índios que resistiram ao extermínio.
A Constituição, nesse caso, afetou os interesses econômicos que a revista VEJA representa. Quem quer se apropriar do resto das terras indígenas ficou inconformado com esse novo pacto, que garante aos índios não a propriedade – que continua a ser da União – mas o usufruto permanente das terras mantidas até aqui. Por isso, a revista desencadeou uma campanha organizada para questionar o lugar que as populações indígenas ocupam hoje na sociedade brasileira.
A estratégia discursiva é bem primária. VEJA jura que as terras ocupadas por ‘falsos índios’ ou por ‘ex-indios’ “diminuem ainda mais o território destinado aos brasileiros que querem produzir”. Reforça, assim, o preconceito de que os índios são improdutivos e preguiçosos. Insiste na falácia de que as terras indígenas – que são propriedade da União – arrancam um pedaço do Brasil, mutilam a pátria. O Brasil da VEJA fica pequenininho, sem 77.6% que constituem áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e antigos quilombos que, para VEJA, foram subtraídos do país.
Como nenhum cientista social assina embaixo de tal babaquice, VEJA ataca então os antropólogos, acusando-os de serem os inventores desses “índios falsos”, juntamente com alguns padres, indigenistas e ONGs. Os três repórteres advogam uma pureza racial, quando decidem, por conta própria, que os Tupinambá e os Pataxó da Bahia não são índios por existir entre eles casamentos com “negros, mulatos e até brancos de cabelos louros”, como se índio fosse um modo de parecer e não um modo de ser.
Se os Pataxó e os Tupinambá são ‘falsos índios’, então podemos dizer que Victor Civita e Roberto Civita são falsos brasileiros, em função dos seus laços com a Itália e os Estados Unidos? A comunidade científica nacional fica tão estarrecida com isso quanto ficou com um fator sanguíneo – o ‘Fator Diego’- que os coronéis da Funai, na época da ditadura militar, queriam instituir como referência para determinar a pureza racial dos índios.
Racismo na mídia
Numa interessante análise sobre o racismo na mídia, publicado em 1997, o pesquisador Van Dijck critica o tratamento que a imprensa europeia dispensa às minorias étnicas. Ele questiona o principio da neutralidade e da objetividade dos meios de comunicação e propõe que a imprensa seja estudada como uma instituição social submetida a um conjunto de demandas políticas, sociais, econômicas e técnicas. Dessa forma, ele enfoca a imprensa menos como um lugar neutro de observação e mais como uma voz ativa, como um agente produtor de imagens e representações.
Van Dijck, em sua análise, privilegia as manchetes e títulos de reportagem, considerando-os elementos fundamentais dos tópicos relevantes da informação, que orientam a leitura na construção de significados. No nosso caso, os subtítulos da reportagem da VEJA, nesse sentido, são muito sugestivos: “os novos canibais”, “lei da selva”, “um país loteado”, “macumbeiros de cocar”, “made in Paraguai”, “índio bom é índio pobre”.
Como sinalizou com indignação a nota oficial da Associação Brasileira de Antropólogos (ABA), assinada por João Pacheco, o repórter da VEJA não faz “qualquer esforço em ser analítico, em ouvir os argumentos dos que ali foram violentamente criticados e ridicularizados. A maneira insultuosa com que são referidas diversas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta e explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas”.
O objetivo da revista é mobilizar opiniões contra os direitos indígenas, que são apresentados como se fossem “privilégios”. Para isso, acionam os estereótipos historicamente operantes sobre o índio, para dar cor e sensacionalismo à narrativa. Chegam a inventar que os índios guarani da Aldeia Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, são falsos índios, vieram do Paraguai. VEJA acha que índio é como uísque: se veio do Paraguai, é falso.
“Nós não precisamos provar quem somos. A própria história, construída pelos não indígenas, identifica o povo guarani como etnia tradicional desta terra. O povo guarani nunca desrespeitou a propriedade alheia; ao contrário sempre foram usurpados de suas terras, impedidos de desenvolver seu modo de vida e cultura” – declarou, indignado, em nota oficial, o cacique de M’Biguaçu, Hyral Moreira. A nota critica “reportagem tendenciosa e preconceituosa” e lamenta que “os autores desta reportagem, em passagem por nossa região”, não ouviram os representantes da cultura guarani.
Nesse momento, estou no interior do Rio Grande do Sul, ministrando curso para professores indígenas. No intervalo, escrevo a coluna. Morri de vergonha ao ler junto com os índios a reportagem da VEJA. Seu conteúdo, carregado de preconceitos, é mentiroso, ofensivo e elimina aquilo que eu estou vendo diante de mim. Um índio guarani do Morro dos Cavalos, cuja existência é negada pela revista, me tranquilizou: – Nda’orerexai ramo ndoroexai avi – ele me disse em sua língua. Pedi que traduzisse: “Se a VEJA não nos vê, nós também não vemos a VEJA”.
É isso ai. Há muito tempo eu também não vejo a VEJA. Desculpem a linguagem: VEJA é um lixo, um produto do sub-jornalismo marrom, que contribui para desinformar seus incautos leitores.
PS. – Agradeço as indicações dadas pela antropóloga Maria José Alfaro Freire, cuja dissertação de mestrado (PPGAS-UFRJ) – “A construção de um réu: Payakã e os índios na imprensa brasileira” – analisa o papel da VEJA e dos jornais de circulação nacional na acusação de estupro dirigida ao índio kayapó Paulinho Payaká em junho de 1992.
Há mais de 10 anos eu não leio esse panfleto que publica mil mentiras para cada verdade.
Só os muito desinformados ainda têm coragem de folhear o panfleto Veja.
Parabéns ao Professor por alertar a população!
Não digo que não acompanho a veja, pois eu a acompanho o lixo que ela vem publicando. É realmente muito triste ver, e ouvir coisas como essas publicadas. É dificil acreditar que uma revista de tal porte possa publicar idiotices dessas, como acadêmico de jornalismo pretendo continuar mostrando esses fatos para fazer um jornalismo decente do Brasil.
“O grupo sul-africano Naspers, que entrou para o controle da Veja há um ano, foi porta-voz do Apartheid durante toda sua existência.”
Prof. quem controla a Veja hoje, fez o que fez na África do Sul… Eles adoram minorias… amam o PSDB, entre outras coisas, quem tem Google que leia.
Quero deixar registrada minha absoluta concordância com o fato de que a revista Veja é de fato UM LIXO. Infelizmente, existem brasileiros que não conseguem perceber o elevado grau de tendenciosidade que existe nas matérias que publica. outro adjetivo: essa revista é NOJENTA.
Frequentemente,é oferecido-me propostas de assinatura desta revista.Não quero ném de graça,pois tenho certeza que estaria contribuindo com alguma coisa contra mim.
Interessante que quando o governo fez o leilao de belo monte, a midia logo se preocupou com os indios!!! na demarcacao da reserva raposa serra do sol nao lembrou deles!!! por que???
Tudo pela liberdade de imprensa ou crime mesmo???
Desculpe a franqueza, mas, há muito tempo que vejo que a veja é tendencioso e não só ela, em 1989, nas eleições presidenciais, notei que algumas delas eram do “lado” do então, candidato Collor, inclusive a Globo… Aqui em Manaus, não é nada diferente, acho até pior, a imprensa local não consegue manter a “imparcialidade” isso é notório e público e principalmente quando se trata dos governos locais(estado e prefeitura-capital)…Moral da história “manda quem pode(quem tem tutu, bufunfa, money,dindin,dinheiro,grana)…obedece(recebe a babita) quem tem juizo(contas bancárias, até o talho, recheadas)…Infelizmente o “quarto poder” constitucional que é a imprensa, além de denegrir, caluniar, difamar,injuriar, está uma vergonha…È jornalistas assassinando esposas, é envolvimentos com o crime organizado, tráfico de drogas, enfim, muito diferente dos tempos da ditadura militar, onde as ideologias falavam muito mais alto, do que agora, onde os profissionais de meia tigela, de marca bunda, se vende por qualquer preço$$$…
Um outro fator, não menos importante em absoluto, é quando um fato ocorre com um cidadão comum, por exemplo, uma pessoa que supostamente teria cometido um estupro, depois de estampado o rosto nos jornais, o estrago já está feito e as consequências negativas, são terríveis, irreversível moralmente falando e fisicamente também…
Show de bola, professor.
Ocasionalmente leio a VEJA quando estou na fila do consultório. Uma vez li (ou melhor, perdi tempo lendo…) uma reportagem da VEJA sobre o amazonas que retrata o Estado como uma região totalmente isolada do resto do País, sem condições e sem atrativos e mostrava uma Manaus totalmente sem estrutura, com ênfase nas fotos de casebres à beira de igarapés (o que não é mais uma visão tão frequente) mas enfim, deu pra notar que a reportagem era sim tendenciosa quando tentava apresentar uma região inóspita, selvagem e atrasada (isso em circulação nacional!) com a intenção não declarada de afastar investidores da região, ajudando os ideais dos grupos políticos interessados em impor uma carga tributária cada vez mais elevada ao PIM, para gerar o isolamento planejado da região em termos logísticos e de comunicação, de modo a quem sabe, cumprir o sonho dourado de certos personagens, que é acabar com a prorrogação da Zona Franca.
E isso não é jornalismo. É manipulação de informação.