Os dados estão na mesa. As artimanhas, táticas e estratégias dos agentes políticos se expõem como segredo de polichinelo, e os jogos do poder retornam ao leito natural de uma história ditada pelos interesses da casa grande, protegidos agora contra os descuidos (falhas de controle) que permitiram, nos últimos pleitos, a eleição e posse de candidatos bafejados pelos sonhos dos pobres.
Esses “riscos” precisam ser eliminados de um sistema eleitoral concebido para assegurar a continuidade do mando pelos donos do poder. Lá trás as oligarquias rurais. Hoje o chamado “mercado”, metáfora do poder econômico, entidade sem feição ou caráter, embora onipresente em todo o corpo da República.
Assustada, nossa classe dominante, retrógrada como poucas, embora jamais ameaçada em sua hegemonia, cuidou, em 2016, de interromper o ciclo progressista iniciado com a heterodoxa eleição de um operário nordestino, outsider por definição. Esta é a gênese do golpe de Estado levado a cabo sob o nome fantasia de impeachment de Dilma Rousseff.
Precatados, os deuses do Olimpo, senhores de baraço e cutelo da democracia desarranjada, recusam-se, desta feita, a correr riscos: trata-se de decidir as eleições antes do pleito, dele excluindo o candidato que pode ganhar, se não é um dos seus.
Legitimidade “às favas”, como diria o coronel Jarbas Passarinho.
A serviço da hegemonia de classe, o Poder Judiciário, um espelho seu, transforma-se em árbitro da política, assalta a soberania popular e, sem o respaldo de um só voto, apresta-se para decidir quem deve ser o novo presidente da República ao dizer quem não pode ser eleito, escanteando um colégio de 150 milhões de eleitores, dos quais mais de 40% já se definiram pelo candidato que o sistema – a conjunção mercado-mídia-judiciário – vetou.
Os meios de comunicação de massa – agentes do processo – cuidam de naturalizar o escândalo.
O alvo é o candidato que, injustamente preso, injuriado, acusado de manhã, de tarde e de noite como corrupto, silenciado, ausente de debates e impedido de cumprir agenda política, cresceu, em duas semanas, mais de cinco pontos na média das pesquisas de intenção de votos dos institutos do sistema (Ibope, Datafolha, CNT/MDA).
São eles que nos dizem que cerca de 40% das intenções de voto, hoje, seriam de Luiz Inácio Lula da Silva, percentual que cresce para 48% dos votos válidos, isto é, se do total excluirmos os eleitores que anunciam ou o voto em branco ou o voto nulo (22%) e os ainda indecisos (6%).
E muito dessas tendências resulta do desalento das grandes massas despossuídas ante o anúncio – grita a imprensa de manhã de tarde e de noite – de que seu candidato não concorrerá. A apurada intenção de voto em Lula é tanto mais significativa quando sabemos que é desestimulada pelo anúncio prévio e incessante de que o ex-presidente estará fora da disputa, fazendo com que muitos de seus eleitores migrem, não apenas para os votos em branco e nulo, mas também para outros candidatos na disputa. Quero dizer que que o apoio a Lula é ainda maior do que sugerem esses números.
Na sequência, em segundo lugar, surge o capitão, com modestos e distantes 18% das intenções de voto, carregando nos ombros, além de sua psicopatologia, uma rejeição (‘não votaria de jeito nenhum’) de 39% dos consultados, a maior dentre todos os pleiteantes. Impugnada a candidatura Lula, é esse agente provocador quem assume a liderança e, dizem os especialistas em números, já estaria com o passaporte para o segundo turno carimbado.
Por sua eventual eleição, pois, será responsável a irrecuperável insensibilidade de uma classe dominante arcaica, atrasada, inculta e inconsequente.
O risco existe, e não pode ser ignorado, mas haverá de ser considerado mais adiante, quando ficar claro que o candidato in pectoris do ‘mercado’, até aqui o ex-governador paulista, não dispõe de condições de enfrentar o nome que unificar as desarticuladas forças e candidaturas do campo progressista.
O quadro que se anuncia aos quatro ventos – exigido pela mídia e antecipado pelos futuros julgadores – diz que o pedido de registro da candidatura do ex-presidente não será objeto de análise pelo TSE, que simplesmente ditará seu veto (impugnação), cumprindo assim sua parte neste desdobramento do golpe de 2016. Ou seja, o julgamento, com sentença há meses conhecida, é uma farsa anunciada, mais uma dentre tantas que tanto amesquinham nossos tribunais e assustam o homem comum do povo.
Uma das muitas e persistentes e agravadas consequências do golpe de 2016 – agravadas pela ilegitimidade e incompetência do governo que a ele se seguiu como seu fruto – é o fracasso da política como o adequado meio de solução dos impasses oferecidos no dia a dia da vida democrática.
A desmoralização da política (e, por via de consequência, dos partidos, dos políticos e das instituições), em que tanto se empenha a mídia, é o primeiro e consequente passo de desmoralização da democracia, de cuja funcionalidade e contradições inevitáveis dependem as grandes massas para a defesa (ainda que precária, mínima) de seus interesses, crescentemente ameaçados pelo capitalismo e pelo neoliberalismo.
É de extrema lógica, portanto, que uma das primeiras iniciativas do governo imposto pelo golpe tenha sido decepar os direitos trabalhistas.
A associação desse fracasso com a falência do governo títere alimenta e potencializa a crise da representação. Sem a legitimidade que só se colhe na vontade da soberania popular, rejeitado por mais de 90% da população, o governo da aliança MDB-PSDB-Centrão se autodesconstitui e os espaços deixados vazios pela ausência de liderança e autoridade moral são ocupados por forças alheias aos fundamentos da democracia representativa.
Autonomizam-se e agigantam-se estamentos da alta burocracia – Polícia Federal, Ministério Público –, ‘estados’ dentro do Estado; o Judiciário, que já incorporara funções legiferantes ao arrepio da soberania popular e da competência privativa do Congresso, passa a comportar-se como Poder Moderador –autoritária lembrança monárquica.
Se o Imperador, recebidas as atas falsas das eleições fraudadas procedia à sua depuração, escolhendo os seus ‘melhores’, o Poder Judiciário, nomeadamente o TSE, agora decidirá quem entra e quem não entra na ‘ata’, ou seja, quem pode e quem não pode disputar eleições, porque isso é muito mais seguro do que arriscar-se ao processo eleitoral livre, aberto a todos os candidatos, Era assim ao tempo da ditadura. Os tribunais (sempre obedientes ao poder, qualquer que seja ele) procediam à “limpeza”, cumprindo com as instruções da legislação castrense.
Depois da violência de um impeachment sem base legal, e ainda sob um governo inepto e rejeitado pelo país, transitando de uma crise política para anunciada crise institucional, o sistema, por intermédio de seus operadores no STF e no TSE, parece não se dar conta da bomba relógio que está armando para explodir em 2019.
Afastando do pleito o candidato que representa a vontade majoritária da população, as forças conservadoras governantes escancaram as portas da institucionalidade para a aventura de um protofascista rejeitado por 40% da população brasileira (e assim sem condições objetivas de liderar o país e governar) embora açulado pelo que há de mais reacionário e atrasado nas forças militares, ignorantes da História, um estamento desapartado da vida nacional, ilha ideológica autorreferente.
Como nos lembra Missão 115 (a história do quase atentado do Riocentro), o belo filme de Silvio Da-Rin, a bomba programada para o atentado às vezes explode no colo do terrorista.
Amor ao fracasso – Atribui-se a Tom Jobim a afirmação segunda a qual “o brasileiro não perdoa o sucesso”. É preciso completar o nosso maestro, lembrando que na mesma medida adoramos o fracasso. Quando Maílson da Nóbrega assumiu o Ministério da Fazenda, em janeiro de 1988, a inflação brasileira era de 18,89% ao ano. Ao deixar o cargo, em março de 1990, ela havia saltado para estratosféricos 82,39%.
Ao invés de ser processado, ou ter cassado o eventual diploma de economista, virou… “consultor” e arroz de festa nos debates das emissoras dos Marinhos. Da mesma forma, o técnico Tite, porque levou nossa medíocre seleção de futebol à desclassificação precoce, foi canonizado pela imprensa paulista.
A difícil arte do envelhecer – FHC, na trilha de Hélio Bicudo, não soube sobrevier à sua própria biografia. Seu artigo no Financial é o lamentável réquiem de um antigo sociólogo.
Marielle – Quando a polícia fluminense e a força militar interventora anunciarão os nomes dos mandantes e dos executores do assassinato da vereadora Marielle Franco? Ficaremos esperando, assim de braços cruzados, até que o crime brutal caia no esquecimento?
Roberto Amaral