Sete ex-ministros da Cultura se reuniram na segunda (11), no Galpão das Artes, zona portuária do Rio, diante de 200 convidados – artistas, intelectuais, políticos, gestores e produtores culturais – para denunciar o tratamento dado pelo governo Bolsonaro ao setor, o que me fez lembrar o ocorrido nos anos 1950 na taberna do Seu Robertinho, lá na praça Bandeira Branca, em Manaus. A lembrança comprova que o Brasil inteirinho cabe no bairro de Aparecida, que já viveu tudo o que aconteceu ou acontecerá no planeta, como confirma dona Waldenora, moradora do beco das Flores. Ela exibiu a efígie do marechal Deodoro numa nota de 20 cruzeiros e pediu:
– Um maço de coentro e outro de salsinha, seu Robertinho.
Pronunciou o “nh” como uma paraense papa-chibé. O diminutivo do nome não expressava carinho, mas uma referência ao tamanho do taberneiro que não cresceu porque, quando criança, permaneceu muito tempo debaixo da mesa – diziam. Baixotinho, sua cabeça piquixita apenas emergia detrás do balcão. Fisicamente, um tampinha. Até aí tudo bem. Espiritualmente – e aí tudo mal – um homúnculo, como atestou sua resposta:
– Salsinha tenho. Coentro não vendo e nem uso, porque fede como sovaco de negro. Todo preto é filho do capiroto e tem “cc” catinguento porque come com coentro.
A nêga Waldenora, embrabecida, subiu nas tamancas e rodou a baiana com giletes afiadas na ponta da saia:
– Cheira meu sovaco aqui, cheira – dizia ela levantando os braços e empurrando-os nas fuças do taberneiro. – Sou cheirosa. O que fede são suas ideias e seus peidos. Sabe por que você é peidão? Porque não come coentro, que tem aroma agradável de cheiro do mato, é muito bom para o tratamento de gases, cólicas intestinais e até para evitar a cãibra que molesta o seu fiofó. Passar bem.
A dona Nôra, que usa coentro para aromatizar a caldeirada de bodó e dar o toque final em suas sopas, saiu aplaudida pelos fregueses e nunca mais botou o pé naquela espelunca. A freguesia migrou para a birosca do Jaime Mãozinha, no outro lado da praça, alternando com a banca de verduras da Leonor. A taberna do racista faliu. Despombalecido, ele morreu. Hoje, ninguém lembra da sua figura.
Onde enfiar a cultura?
Eis o que eu queria dizer: Robertinho, essa alma sebosa, ressurgiu dos mortos. O capitão Bolsonaro o nomeou Secretário Especial de Cultura, com o nome de Roberto Alvim. Foi um prêmio por ter blasfemado e ofendido a todos nós, xingando a figura sagrada de Fernanda Montenegro, 90 anos, o que, vindo de tal cloaca, é até um elogio. Reconhecida internacionalmente como patrimônio cultural do Brasil, Fernanda “é um tesouro que nós temos, uma senhora atriz atacada por um pivete” – nas palavras do ator Marco Nanini, presente ao evento organizado pela Associação de Produtores de Teatro do Rio (APTR).
A missão do pivete é não deixar pedra sobre pedra do que foi construído no campo da cultura e da liberdade de expressão e de pensamento. Com isso, ele uniu os ex-ministros de governos tão antagônicos ideologicamente – de Collor a Temer, passando por FHC e Lula – que condenaram os cortes orçamentários da área e a escalada de autoritarismo: a censura e os editais públicos como o do Banco do Brasil que vetam cenas de nudez e exigem um enquadramento religioso e político da obra. Trata-se de um retrocesso sem precedentes.
Na avaliação dos ex-ministros, existe uma intenção deliberada de implodir o setor cultural. Primeiro, o capitão extinguiu o Ministério da Cultura, reduzindo-o a uma secretaria burocrática ligada à pasta da Cidadania. Agora, em novembro, transferiu-a para o Ministério do Turismo. Na realidade, ele não sabe onde enfiar a cultura e as artes, que não têm lugar no seu horizonte, simplesmente porque o universo cultural é um dos espaços de liberdade e de resistência, que eles precisam detonar. Daí o desmonte.
Os ex-ministros já haviam se reunido em São Paulo, em julho, quando publicaram um documento, salientando a importância da cultura em três aspectos: como expressão da nossa identidade, como direito fundamental e como vetor de desenvolvimento econômico para geração de emprego e renda. Denunciaram a demonização das leis de incentivo, especialmente da Lei Rouanet, criada pelo ex-ministro Sérgio Rouanet, que instituiu em 1991 o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC). Mesmo com a saúde abalada, Rouanet, com 85 anos, compareceu em cadeira de rodas ao evento, que contou ainda com a presença de integrantes das comissões de cultura da Câmara Federal – Benedita da Silva, da Assembléia Legislativa – Eliomar Coelho e da Câmara Municipal do Rio, vereador Reimont.
Lá estavam também a ex-ministra de Dilma, Ana de Hollanda, que condenou “a postura moralista, fascista, homofóbica e misógina” predominante nas atuais medidas relacionadas à cultura. Sua sucessora, Marta Suplicy, lembrou que “a ditadura caiu quando nos unimos para defender a democracia. É isso que precisamos fazer agora. União de todos”.
Comer com coentro
Gilberto Gil, ministro por quase seis anos, no governo Lula, exigiu “consideração e respeito às conquistas do nosso passado e uma visão mais generosa do nosso futuro”. Ele se aproximou do conceito de cultura pela via artística, em 1969, quando compôs a música “Cultura e Civilização”, que a Gal Costa, em sua fase roqueira e psicodélica, também gravou: “A Cultura e a Civilização, elas que se danem, ou não”. Roberto Alvim, que só consegue fazer uma leitura rasa, levou ao pé da letra, eliminou o “ou não” e entendeu que a cultura devia mesmo se danar para gáudio do capitão.
Se Alvim fosse capaz de entender o que lê, seria o caso de recomendar “Cultura com Aspas” (2009) da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que diferencia o sentido de cultura, sem aspas, como patrimônio da humanidade e “cultura” como expressão particular de cada povo. Aí então Alvim saberia o que “o licor de jenipapo e o papo das noites de São João” têm a ver com a cultura, que estimula a liberdade de criação e de informação, permitindo que cada um seja autor de sua própria história, controle sua vida e fique por dentro, como no quentinho do útero materno.
Ninguém é obrigado a gostar de coentro, mas ninguém pode, por isso, impedir sua fruição por aqueles que gostam. O que fazer diante do “longo e tenebroso inverno” da barbárie, reforçada agora pela Proposta de Emenda à Constituição – a PEC do ministro Guedes – que desobriga o poder público de construir escolas para assim ampliar o ensino privado no país? Só nos resta seguir o exemplo da dona Waldenora: rodar a baiana com giletes afiadas na ponta da saia. “Resistir quem há-de”?
P.S. – O poeta de Aparecida Luiz Bacellar, prêmio nacional de poesia em 1959, cantou: “E mesmo que toda a gente / fique rindo, duvidando / destas estórias que narro / Não me importo: vou contente / toscamente improvisando / na minha frauta de barro”.
Para que ninguém duvide, vai aqui o destino de alguns personagens citados: o taberneiro racista era, na realidade, o seu Francisquinho, cujo nome foi mudado neste relato para assim “rimar” com Alvim. Sua única filha, hoje com outra cabeça, foi adestrada para chamar dona Waldenora, de quem não tenho mais notícias, de “Nora Cecê”. O Jaime Mãozinha morreu. A Leonor está vivíssima com 84 anos e continua uma gatinha toda empiriquitada. Roberto Alvim vai falir já-já. Gil segue (en)cantando. Fernanda Montenegro, cada vez mais amada. E o livro da Manuela é discutido em todas as universidades do país.
Cultura e Civilização
Gilberto Gil
A cultura e a civilização / elas que se danem ou não
Somente me interessam /contanto que me deixem
meu licor de jenipapo / o papo das noites de São João
somente me interessam / contanto que me deixem
meu cabelo belo / belo como a juba de um leão
contanto que me deixem / ficar na minha
contanto que me deixem / ficar com minha vida na mão
minha vida na mão / minha vida
A cultura e a civilização / elas que se danem ou não
Eu gosto mesmo / é de comer com coentro
eu gosto mesmo / é de ficar por dentro
como eu estive algum tempo / na barriga de Claudina
uma velha baiana / cem por cento.