Por Ribamar Bessa:
Dizem que domingo passado o Diabo saiu do inferno e foi dar uma voltinha na Vila da Penha, no Rio. Escondeu o rabo, vestindo o terno do deputado Eduardo Cunha (PMDB, vixe, vixe). Ocultou o chifre, botando a peruca do pastor Silas Malafaia. A cueca usada era do deputado Marco Feliciano (PSC, vixe, vixe), pastor da Catedral do Avivamento. Assim, disfarçado e endomingado como quem vai à missa, o Capiroto presenciou uma maldade que nem ele tem coragem de praticar: o apedrejamento de uma menina de 11 anos, que saía alegre da festa de candomblé vestida de branco com seu turbante – o ojá – enrolado na cabeça.
– “Macumbeira, vai queimar no inferno. Sai Satanás” – gritavam os marmanjos. Na mão esquerda traziam a Bíblia, na direita pedras que quebraram a cabeça de Kayllane Campos, uma criança. Saiu muito sangue, ela desmaiou, enquanto eles berravam: – “Aleluia! Jesus está voltando“, mas quem voltou mesmo foi o “Coisa Ruim”, por não acreditar naquilo que via: seres humanos que eram ainda mais escrotos do que ele. Horrorizado com tanta perversidade, o Capeta se pirulitou de regresso ao seu cafofo, onde está à espera dos apedrejadores. Repetiu-se aquela cena do filme Rashomon de Kurosawa.
Este não foi um fato isolado. O país respira intolerância por todos os poros. O fanatismo, inclusive no campo político, atinge nível tão insuportável que nem o Diabo aguenta e até Deus duvida. Diariamente, em algum lugar do país, pitbulls engravatados agridem religiões afro-brasileiras e profanam a Bíblia que carregam como se fossem tijolo. O registro oficial, que deixa de fora muitas ocorrências não notificadas, apresenta dados alarmantes nos últimos quatro anos. Os crimes foram 15 (2011), 109 (2012), 231 (2013) e 249 (2014), com o Rio em primeiro lugar e o Amazonas em terceiro, numa curva sempre crescente.
Pacto com o Capeta
Nesta estatística não consta o que aconteceu outro dia em Cachambi (Rio). Uma corja de energúmenos explodiu um morteiro dentro de um templo umbandista, arrombou portas, quebrou imagens, destruiu a casa das almas e vandalizou a casa de Exu. Recentemente mães e filhos de santo foram expulsos dos morros do Rio por militantes pentecostais. Há duas semanas, morreu em Camaçari (BA), Mãe Dedé de Iansã, que não suportou os ataques de membros da igreja evangélica instalada em frente ao terreiro Oyá Denã.
Na última quinta-feira, foi a vez de um templo espírita na Rua Humaitá (RJ) ser apedrejado por três indivíduos com a Bíblia na mão. Quebraram estrela, imagens de Buda e de Nossa Senhora Aparecida. Nem os mortos escapam: no mesmo dia, lá em Uberaba (MG), danificaram o túmulo do médium Chico Xavier. Parece que o cordeiro de Deus não tirou os pecados do mundo, mas tirou a humanidade e a inteligência dos agressores.
Não temos notícias de punição para tais crimes hediondos, embora representantes da Umbanda e do Candomblé tenham pedido ao Ministério Público abertura de inquérito civil para investigar casos de intolerância religiosa, mencionando os “Gladiadores do Altar”, grupo formado por jovens da Igreja Universal (Iurd), que uniformizados como militares, marcham e gritam palavras de ordem como um batalhão do exército.
Mesmo diante do fato de que os agressores são quase sempre pertencentes a igrejas de diferentes denominações evangélicas, o pastor Silas Malafaia, dirigente do Conselho de Ministros Evangélicos do Brasil (CIMEB), exime a instituição de qualquer responsabilidade: “Se um umbandista ataca uma igreja evangélica, não podemos culpar a Umbanda” – ele relativiza. Só que não existe registro de um único caso de ataques a um templo evangélico por umbandistas. Não existe. Nem de discurso contra outras religiões. Os umbandistas, ecumênicos, não acham que a sua é a única fé verdadeira e que as demais são do Cramunhão.
Os donos de Cristo
Já o contrário aparece com frequência. A Igreja Universal postou no Youtube vídeos que debocham do Candomblé e da Umbanda. O Ministério Público Federal, invocando a liberdade de crença e de culto garantida pela Constituição de 1988, pediu no ano passado que fossem retirados. No entanto, o juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal (RJ), indeferiu, afirmando que “manifestações religiosas afro-brasileiras não podem ser classificadas como religião“, porque – segundo ele – “não possuem um livro sagrado como a Bíblia ou o Alcorão“.
De um lado, o juiz grafocêntrico cartorializou a Bíblia, entendendo que religião é como jogo do bicho: só vale o que está escrito. Para ele, valores, rituais e saberes que circulam no mundo da oralidade não podem aspirar o status de religião oficial. De outro lado, o pastor Malafaia, que segundo a revista Forbes é o terceiro pastor mais rico do Brasil com um patrimônio de 150 milhões de dólares, não assume que as instituições religiosas têm um papel na gestão e no controle da ideologia do seu rebanho, influenciam o comportamento dos fiéis e fornecem, inclusive, as consignas que embora mencionem a Bíblia, usam a metodologia do Capiroto (PSDB, vixe, vixe).
Resta saber as razões de tanto ódio contra quem reza por outra cartilha. Uma pista foi dada por Contardo Calligaris em sua coluna na Folha de SP desta semana: “Em geral, os que transformam a fé em comércio preferem deter o monopólio de seu profeta, de seus dogmas, de suas cerimônias (…) querem ser os únicos donos do Cristo para vendê-lo melhor”.
Talvez a intolerância possa mesmo ser explicada pela lógica do mercado. Certos comerciantes da fé e empresários do faith-business buscam atrair adeptos, disputando entre si o dízimo e os recursos do estado com a isenção de impostos e dotações orçamentárias conquistadas pela bancada evangélica no Congresso Nacional. Embora não saiba, a menina apedrejada pagou pelo fato de o candomblé ter crescido 31.3% em dez anos, num período em que a população brasileira aumentou 15.7%. Daí o preconceito e a pedrada que horrorizou o próprio diabo.
O arroz e a flor
A antropóloga Renata Menezes, professora no Museu Nacional e pesquisadora do ISER, abre seu artigo Religiões e culturas: o desafio da diferença com o relato de um cara que colocava flores no túmulo da mãe, quando viu um chinês colocar um prato de arroz na lápide ao lado.
– Desculpa, mas o senhor acha mesmo que o seu defunto virá comer o arroz – o cara pergunta.
– Sim, ele costuma vir na hora em que a senhora sua mãe vem cheirar as flores – respondeu o chinês.
P.S. O relato da Renata menciona apenas um parente, mas não resisti e meti a mãe no meio. A autora discute a diversidade humana, a forma como os grupos sociais lidam com as diferenças religiosas e o choque cognitivo entre eles. O leitor interessado em aprofundar o debate sobre religião, cultura e sociedade no Brasil, assim como sobre as relações entre umbanda e pentecostalismo, encontra reflexões esclarecedoras nos artigos de Renata de Castro Menezes, entre os quais Aquela que nos junta, aquela que nos separa: reflexões sobre o campo religioso brasileiro atual a partir de Aparecida e no texto de Rubem César Fernandes “Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá”.