Já nos aproximamos dos 30.000 mortos. Perdemos amigos, familiares, alunos, professores, escritores, poetas, músicos, atores e pessoas anônimas amadas que construíam esse país. Não temos sequer um ministro da saúde e nem uma política para defender a vida dos brasileiros, seriamente ameaçada pela “gripezinha” do coronavirus. Com ameaças à democracia feitas pela alucinada familiciana, o Brasil desce cloroquinado e desgovernado ladeira abaixo em direção ao abismo. Perplexos, recorremos à pergunta formulada pelo poeta Sá de Miranda, no último verso de um soneto escrito em meados do séc. XVI: “Que farei quando tudo arde?”.
É preciso resistir. Como? Cada um em sua trincheira. Não comento os dois vírus que nos afligem – o corona e o bolsovirus – nem o crime do policial racista que assassinou George Floyd com protestos que incendiaram cidades nos Estados Unidos e alimentam nossa fé em um mundo melhor. Aqui, me agarro em modesta boia de esperança lançada no final de maio na Semana Nacional dos Museus, em sua 18ª edição, com o tema Museu para Igualdade, Diversidade e Inclusão, cuja programação foi adaptada ao ambiente virtual. Celebrou-se no mundo inteiro o Dia Internacional dos Museus criado pela UNESCO em 1977, trazendo com ela uma série de questões.
– Que museu e que museologia queremos e teremos depois da COVID-19? Se é que haverá um “depois” – se pergunta o ex-diretor do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Mário Chagas. A resposta talvez esteja sendo esboçada em duas modestas trincheiras que aqui destaco: o Museu Casa do Pontal no Rio, onde vivo, e uma experiência singular ocorrida no Amazonas, minha terra natal.
O fogo e a água
Desde o incêndio no Museu de Arte Moderna, no Rio, o fogo já consumiu oito instituições, destroçando parte importante do patrimônio nacional. Os mais recentes foram o Museu Nacional (RJ), o Museu da Língua Portuguesa e o Memorial da América Latina (SP). Depois do fogo, agora é a água que ameaça o Museu Casa do Pontal no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio, detentora do maior acervo de arte popular do país. Tive a sorte de visitá-lo com meus alunos do Curso de Museologia da UNIRIO, antes do aterro feito no terreno dos fundos para a construção de um condomínio, que deixou a Casa do Pontal mais de um metro abaixo das novas ruas, ocasionando sucessivas inundações.
Cadê a boia de esperança? Onde a resistência? Ah, ela está na ação da direção e dos seus funcionários, que há dez anos lutam contra as enchentes. Eles adaptaram a expografia, além de atuarem rapidamente quando vem a chuva. No dia 1º de março deste ano, num trabalho incansável, levaram as peças dos lugares mais baixos das vitrines para os mais altos, quando o canal ao lado da casa transbordou. Duas repórteres da Folha de SP – Francesca Angiolillo e Úrsula Passos – registraram a ação de dois funcionários que, com enormes rodos, puxavam água pela porta de saída. Outro retirava papelão encharcado por uma porta de madeira talhada com motivos de animais.
Dez dias depois, cadeiras e pufes secavam ao sol e era possível notar ainda do portão que as coisas não iam bem. O caminho coberto por pedrinhas até a casa estava cheio de lama e, em alguns pontos, havia buracos enormes – relatam as duas repórteres. A instituição aguarda a transferência para um novo prédio na Barra da Tijuca, mas a prioridade é salvar as coleções – diz Lucas van de Beuque, diretor-presidente do museu, preocupado com o material das peças de barro, papel machê e madeira, ameaçadas pelas enchentes, depois da construção feita para abrigar os atletas da Olimpíada 2016 e hoje de uso residencial.
A Prefeitura do Rio reconhece sua responsabilidade no problema por ela criado e doou um terreno para a nova sede, mas as obras já iniciadas foram interrompidas, entre outras razões, por falta de pagamento. As secretarias de Infraestrutura e a de Urbanismo tiraram o loló da seringa, da mesma forma que a Secretaria Municipal de Cultura. Enquanto isso, a garantia de que os nossos filhos e netos poderão fruir dessas obras de arte popular reside na ação desses funcionários, sacerdotes do patrimônio, que surgiram em outras cidades brasileiras como Manaus.
A poética do barro
Lá, o Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) organizou uma programação virtual. Sua exposição Maku Tá Muraki: a arte Baré”, inaugurada em fevereiro, que não pôde ser visitada fisicamente em razão do isolamento social, narra a história do povo Baré, habitante do território onde Manaus foi erguida. Hoje, seus descendentes estão lutando contra o coronavirus na comunidade Parque das Tribos no bairro do Tarumã.
No entanto, a resistência, num trabalho de formiguinha, surgiu de uma iniciativa particular da cientista social Rila Arruda mestra pela UFAM, que há alguns anos trabalhou na equipe de planejamento do Museu da Cidade de Manaus, a expressão mais acabada da museologia no Amazonas. Concursada, mas ainda não chamada pelo IPHAN, Rila que nasceu e sempre viveu em Manaus, é apaixonada por museus, consciente de sua importância para o registro da memória, da arte, da cultura. Visitou alguns, entre os quais o Museu Nacional de Antropologia do México e o Museu Nacional do Rio de Janeiro e curtiu, através de Tammy Cavalcante, o Museu Kura Hulandam em Curaçao.
– Eles se tornaram fundamentais na minha reflexão, em distintos momentos, sobre as diferenças de narrativas construídas pelos museus – ela escreveu.
Rila tomou a iniciativa de buscar o Movimento Abrace um Museu, que recolheu e publicou 15 relatos de profissionais, pesquisadores e visitantes das exposições, que vão abaixo discriminados. São gestos como esses, sem retórica grandiloquente, que mostram – como quer Ângela Mascelani da Casa do Pontal – “algo fortemente direcionado à confiança na capacidade do povo brasileiro de trazer mudança e beleza para o mundo”. Ângela conclui, ao compartilhar fotos da exposição (RE) INVENTAR, mencionando a “poética do barro” presente nas obras dos geniais artistas Mestre Vitalino, Zé Caboclo, Manoel Eudócio e Luiz Antônio, que contribuíram para a difusão das artes plásticas populares:
– Artistas inventam mundos. Mostram caminhos, quando tudo parece obscuro. Iluminam veredas, apontam trilhas…. Suas obras nos convidam a abrir portas e janelas para a rica diversidade brasileira.
Quando o mundo arde, o que fazer? O fundador do Museu do Pontal, Jacques Van de Beuque, que faria 98 anos neste 27 de maio, viveu os horrores da guerra. No seu texto de abertura da instituição, ele disse profeticamente:
– Num mundo dominado pela violência e pelo ódio, é saudável encontrar outro universo, criado por mãos habilidosas de artistas humildes e honestos.
Quando o mundo arde, a arte nos salva.
Obs: Fotos: Zô Guimarães/Folhapress/, Angela Mascellani, Museu Casa do Pontal e Rila Arruda.
P.S. Textos do Movimento Abrace um Museu, consultar www.museusdoam.blogspot.com
1. Rila Arruda – Museu: do gosto ao trabalho.
2. Tammy Cavalcante – O poder do hábito
3. Rubem Valério Jr. – As diferentes formas de vestígios arqueológicos
4. Fabíola Abess – Cemitério e Patrimônio Cultural
5. Lucas Aflitos – O museu como ferramenta de instrução
6. Marilina Pinto – Museus e Culturas como Espaços de Resistência
7. Márcia Rebeca – Museu: memória afetiva e reflexiva
8. Sílvia Moraes – Museus, viagens e aprendizados
9. Ademar Britto Jr – Notas sobre um artista plástico no Amazonas
10. Naty Veiga – O som para além do tempo
11. Douglas Machado – Museus: investigação e educação
12. Daniele Guimarães – Museus: reflexões e questionamentos de uma visitante
13 – Saulo Moreno – Memórias (recentes) de minha atuação no Amazonas: palavras que esperam abraçar
14 – Cláudio Pinheiro – A falta que um museu me faz
15 – Jackson Suriadakis – Museu para todos?