Qual Brasil? Qual Estado?

Por Roberto Amaral:

Defender a ortodoxia individualista, em nossos dias, é desdenhar da realidade e menosprezar a história.

Escrevendo para seu tempo, ou, refletindo seu tempo, e nele realizando o projeto pessoal de combate ao mercantilismo que dominava as ideias e as políticas da Inglaterra e dos EUA, principalmente, Adam Smith (1723-1790) tornar-se-ia o mais importante teórico do liberalismo econômico, seguindo as pegadas do pensamento político de John Locke e Montesquieu.

Nestas linhas é impossível reduzir seu pensamento, senão ressaltar dois de seus pilares: (i) o individualismo exacerbado associado a um (ii) Estado silente e omisso. Para fazer-se entender, o professor escocês dizia não ser da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que saía seu jantar, mas sim do empenho de um e de outro  em promover seu auto-interesse (selft-interest), que era conquistar a freguesia, vender mais e obter mais lucro e isso (o individualismo), era muito bom para a economia e o bem-estar de todos, pois  a competição entre os diversos fornecedores, eliminando os incompetentes,  levaria não só à queda do preço das mercadorias como ao aumento dos salários, o que podemos traduzir como fortalecimento  do mercado consumidor.

Decorre daí a grande tese: a saúde das nações é o resultado direto das ações dos indivíduos em defesa de seus próprios (e egoísticos) interesses, promovendo o desenvolvimento e a inovação, com vistas a ganhar terreno na competição livre do mercado cujas forças, portanto,  deveriam agir livremente: todo empresário deve fazer o que bem quiser com seu capital, sem ter de obedecer a qualquer regulamentação governamental.

O capitalismo e a liberdade individual (verso e reverso de uma só moeda), por si sós, promoveriam  de forma ‘luminosa’ o progresso da humanidade. O Estado é que atrapalha a liberdade dos indivíduos. Portanto…

Mas sua obra seminal, A riqueza das nações (The Wealth of Nations) foi escrita em 1776, no alvorecer da Revolução industrial inglesa (1760/1840). Morto em 1790, certamente o fundador da economia-política não teve tempo para conhecer em toda a medida as consequências da associação liberalismo-individualismo-laissez-faire/laissez passer, destruindo o meio-ambiente, a qualidade de vida de todos, mas principalmente dos operários (homens, mulheres e crianças), mal pagos e desassistidos, sem qualquer nível de proteção, explorados ao limite da resistência humana, cumprindo jornadas de 12 horas de trabalho, sem direito a férias ou repouso semanal, enfim, destruindo a vida de milhões de ingleses, franceses e alemães, tragédia cujo horror inspirou a crítica social de Charles Dickens e Émile Zola, este notadamente com Germinal (1885).  E a denúncia político-social, ainda não superada, constante do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels (1848). Deu nisso a desregulamentação.

Defender essa ortodoxia individualista, em nossos  dias, é desdenhar da realidade e menosprezar a história. Como falar na ação livre do mercado e em livre concorrência, como fazem os economistas mediáticos brasileiros, quando a realidade de nossa economia é a transição do oligopólio para o monopólio?

Admitamos, para facilitar, que possamos esquecer as causas da primeira guerra mundial e suas consequências; mas, como riscar da história o crash da bolsa de Nova Iorque de 1929? Como ignorar a importância do keynesianismo (e a recuperação do papel do Estado) na reconstrução europeia, a partir do final da Segunda Guerra Mundial?

Como, por outro lado, ignorar o papel da desregulamentação do mercado na construção da crise do capitalismo internacional como desdobramento da crise financeira dos EUA de 2008, que persiste em nossos dias, deprimindo o crescimento da economia em nível mundial? Crise que cobra a destruição do welfare state, a revisão dos direitos trabalhistas e previdenciários, a redução do emprego, a inibição da economia?

Há poucos dias ouvi eminente economista mediático repetindo a velha frase do reaganomics: ‘o problema é o Estado’. É a visão de Hayek, que faz do neo-liberalismo a versão radicalizada de Adam Smith (ou o retorno a Quesnay), repetida acriticamente no Brasil pelos cérebros que orientaram Collor e FHC, repetida à saciedade pelos grandes meios de comunicação, jornalões e revistonas à frente.

Digamos, de início, que não há o Estado, mas Estados, cujas características variam no tempo e no espaço, numa relação dialética.

O Estado mercantilista sobre o qual se debruçou Adam Smith, voltemos a ele, era Estado distinto daquele que defenderia em suas obras e que seria construído pela Revolução Industrial. Óbvio, não? Distintas seriam igualmente as ordens econômicas e políticas dos Estados alemães da revolução industrial, da democracia weimariana, do hitlerismo e do após-guerra.

De outra parte, não existe um papel padrão para Estados distintos, pois, hoje,  o que se pode esperar de qualquer Estado escandinavo é bem distinto do que se deve esperar e requerer do Estado brasileiro, ou do Estado chinês, ou do Estado angolano, ou sudanês, ou iraquiano, ou iraniano. A realidade histórica separa as missões dos Estados segundo o desenvolvimento da sociedade que procura organizar, seja sociedade em processo de industrialização, ou pós-industrial, ou subdesenvolvida ou emergente, e assim por diante. Não é um mesmo Estado a instituição política que governa a Europa e ao mesmo tempo aquelas sociedades quase ainda tribais da África e do Oriente. Óbvio, parece-me.

Nos regimes capitalistas, cuja dominância é a  característica dos tempos atuais, a omissão do Estado significa  a ditadura do capital sobre o trabalho, donde o esmagamento dos direitos dos assalariados em geral, a destruição  dos direitos e garantias sociais, enfim, a barbárie, posto que, mesmo afastadas considerações de ordem ético-humanista, é incompatível a existência de qualquer sorte de capitalismo com a destruição do proletariado.

Não pode haver explorador sem explorado, e a função política do Estado, visando à sobrevivência do capitalismo, é a de assegurar a exploração, mantendo-a,  todavia,  sob controle, de modo a permitir meios e limites de sobrevivência dos trabalhadores, sem o que não é possível extrair a mais-valia.

No caso brasileiro, porém, país ainda em busca de desenvolvimento e ainda  ferido por perverso atraso social, o Estado tem exercido, desde a empresa colonial, a função indeclinável e insubstituível de indutor do desenvolvimento, exercendo aquele papel de pioneirismo que teoricamente seria reservado ao capital privado, que, aqui, foge do risco e protege-se no rentismo, locupletando-se às custas do Estado via juros escorchantes.

Daí a grita permanente por juros elevados, a pretexto de segurar o consumo e controlar a inflação. Nossos grandes empresários são clientes privilegiados das carteiras dos bancos públicos, que raramente honram, como podem esclarecer nossos ruralistas.

Além de cumprir com seu dever regulamentador e fiscal dos agentes econômicos, evitando ou minimizando os conflitos e protegendo os interesses coletivos, em tese, o Estado assume os investimentos e as responsabilidades sociais às quais se nega o capital privado, e ainda ampara o empresariado, inclusive o financeiro, contra suas fraudes ou sua incompetência gerencial.

Assume o Estado aqueles investimentos que não atraem a economia privada, seja pelos altos volumes requeridos, seja pela lenta recuperação do capital, seja pela margem de lucro proporcionada; protege ainda o empresariado nacional em seus conflitos com o capital multinacional, tanto no plano interno quanto no das transações comerciais internacionais. Mesmo Adam Smith criticava a proteção estatal às empresas monopolísticas, financiadas com recursos públicos.

Outra besteira mediática é a falsa discussão sobre tamanho do Estado. Ora, a importância e necessidade do Estado – variante de sociedade para sociedade – não se mede com fita métrica, mas perquirindo a quem beneficia, a quem ele serve, a que projeto, seja econômico, seja político, seja social se destina.

Pequeno ou grande, quais os fins do Estado? Proteger as grandes massas, promover o bem comum segundo os interesses das maiorias, defender os interesses das classes subalternas, defender o público e assim assegurar saúde pública, ensino público, segurança pública, transporte público? Induzir o desenvolvimento promotor do crescimento econômico do país, da boa qualidade de vida de sua população, da segurança nacional, da socialização das riquezas?

Ou a função do Estado, grande ou pequeno, é simplesmente garantir o lucro dos grandes grupos, a lucratividade predatória do capital, a concentração da riqueza e renda e pôr-se a serviço da sociedade de classes?

Perguntas que neste ano devem ser respondidas pelos candidatos à Presidência da República.

Lobby caríssimo – Até pouco dias passados o combate à política externa independente brasileira era ofício assalariado de diplomatas aposentados, uns magoados, outros amuados, todos  com presença ativa na chamada grande imprensa.

No novo ano, o ex-presidente FHC se incorpora, de mala e cuia, no lobby (mantenho a grafia inglesa em homenagem ao príncipe dos sociólogos brasileiros) do ‘complexo de vira-latas’, ou seja, considera idiota qualquer política externa brasileira que não seja um prolongamento dos interesses do Departamento de Estado dos EUA. Cada um serve ao Deus de sua estima. Em seu artigo desta semana, porém, o professor doutor tropeça. Está bem, faz parte do ofício, propor, por exemplo, e com grande originalidade, que o Brasil “estreite relações com os EUA”, afastando-se do “bolivarianismo”.

Mas não fica bem pensar que os talebans fazem parte do “mundo árabe”, quando eles, como muito bem observa José Antonio Lima em seu twitter, integram os povos pashtuns, maior etnia predominante no Afeganistão (e muito presente no Paquistão) menos árabe que o professor e imortal uspiano.

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