“Pelas ruas marchando / Indecisos cordões / Ainda fazem da flor /
Seu mais forte refrão / E acreditam nas flores / Vencendo o canhão”.
(Geraldo Vandré)
– Vovô, como é o nome dessa flor?
A pergunta da Ana, do alto dos seus 7 anos, me pegou de surpresa. Era uma tarde calma. Estávamos numa alameda do parque onde costumamos passear nos fins de semana.
– Essa flor? … – ga-gue-jei para ganhar tempo.
– É. Essa flor, vovô! – ela apontou, enfática, uma florzinha alaranjada de pétalas em forma de pequeno catavento, pendurada na ponta de um ramo, que dançava na cadência de suave brisa. Ao lado dela, bailavam outras da mesma família, todas escoltadas por folhas verdes. Eram pequenas, mas charmosas e desinibidas, com pinta de quererem seduzir polinizadores, borboletas e beija-flores. Hesitei:
– Deixa ver se eu me lembro, essa flor…. essa flor….
Por um momento passou pela minha cabeça dar um chega-pra-lá autoritário, do tipo “deixa de ser curiosa, menina”, o que seria uma infâmia capaz de comprometer a busca do conhecimento. Nem minha neta, nem meus alunos merecem tal “curiosicídio”. Era melhor enrolar, criando um nome científico qualquer, que logo ela esqueceria. Os botânicos não usam o latim para batizar as flores? Pois é. Inspirado em Vandré, posso muito bem inventar que aquela flor é a “Vincere bombardam”, a “Flos resistentiae” ou ainda, neste período eleitoral, a “Inimica centurionis Bolsonarii”.
A flor perdida
O canhão vencido vai no caso acusativo, como qualquer bombarda derrotada quando é objeto direto. Como a resistência é da flor, que é inimiga do centurião, ambos vão no genitivo. Os casos e as desinências estão, portanto, corretos. Para algo tinha de servir o “latim de missa” do seminário. Mas desisti porque é desonesto usar a palavra certa para enganar pessoas, mormente a própria neta. Afinal, é essa curiosidade que empurra a gente e nos faz avançar. O desafio das perguntas incômodas é que nos acercam ao saber. Foi por isso que optei por cometer um “vovocídio”, consciente de que decepcionaria a filha da minha filha, para quem o avô é aquele velho que sabe tudo.
– Não sei o nome dessa flor – admiti, disfarçando o constrangimento.
– Como não sabe? – insistiu Ana, desapontada.
– Sei lá! Minha avó não me falou. Minha mãe se calou. A professora na escola não me ensinou. A televisão não mostrou. O jornal não divulgou. O livro não publicou. Museu, sindicato e igreja me ocultaram essa flor – denunciei, citando esses e outros aparelhos ideológicos de estado registrados por Louis Althusser.
De qualquer forma, senti que naquele momento murchava a flor do conhecimento que eu fingia possuir para impressionar minha neta. Era um estrago tão grave quanto o dano feito à jovem Dorila, “terna e mimosa”, cantada pelo poeta mineiro do séc. XIX, José Eloy Ottoni. A moça “foi ao prado colher flores”, mas “eis que do prado chorando voltou, confusa e aflita”. Quando lhe perguntavam o que havia acontecido, calada ficava e só emitia gemidos. O poeta matou a charada:
“Que tem Dorila? Os sinais
Indicam, a pesar seu,
Qu’indo ao prado colher flores,
A flor, que tinha, perdeu…”
Quanto a mim, indo ao parque ver flores, a flor que perdi foi a do saber. Fui epistemologicamente desvirginado por não poder compartilhar um saber com minha neta.
Vovocídio
– Se você não sabe, vou perguntar, então, da minha avó – ameaçou Ana.
– É isso aí! Vai lá! – falei, dando a maior corda. Recomendei que buscasse ainda os dois avós paternos, ciente de que nenhum dos três saberia responder. Dessa forma, o “vovocídio” seria completo, o que relativiza minha ignorância. Não deu outra. Aliás, qualquer um de nós entra num parque e não identifica as espécies. É tudo genérico: plantas, árvores, pássaros. Fomos afastados da natureza que para nós é uma ilustre desconhecida. Só netos, camponeses e índios conseguem observar aquilo que o urbanoide não vê.
E foi justamente um índio Pataxó que me revelou:
– Ixora! Essa flor se chama ixora, pode ser encontrada nos canteiros e jardins de muitas praças do Brasil. Conhecida também como “cruz de malta”, “chama da floresta” e “trepadeira vermelha”, é um santo remédio. O chá da raiz cura dor de garganta, a folha é usada para o tratamento de pereba e curuba, o caule e as folhas cicatrizam feridas e desinflamam tumores.
– E o que significa na tua língua? – indaguei.
O meu amigo Pataxó respondeu que aquela palavra, cuja pronúncia é icsora, não pertencia à língua Patxohã, era estrangeira, que essa flor nem existia no Brasil, que foi trazida por D. João VI, em 1809, através do Suriname, onde é a flor nacional, que é originária da Índia e da Malásia, que dá o ano todo e prefere o clima quente, que tem várias cores – amarela, vermelha, laranja, cor de rosa, que são mais de 400 variedades. Quando eu quis entender como é que ele havia aprendido tudo isso, me disse que observou, perguntou dos velhos e complementou com o “Google”.
De posse de tais informações, pude me exibir agora para minhas três netas. Voltamos ao mesmo parque, às mesmas flores, no mesmo jardim. Expliquei-lhes que não basta saber o nome de uma flor, que é preciso cuidá-la e defendê-la como faz Katumbaiá, o espírito protetor da floresta na cultura Pataxó. É assim que a flor pode vencer o canhão do centurião.