Por Ribamar Bessa:
“Fidel, Fidel, qué tiene Fidel, que los americanos no pueden con él”.
De uma canção de Carlos Puebla
Nem o enterro das cinzas de Fidel Castro, neste domingo (4), dará trégua à guerrilha travada nas redes sociais. O facebook converteu-se numa Sierra Maestra. “Gusanos” e “castristas” disparam insultos, ofensas, xingamentos. Se palavra fosse bala, o campo de batalha da internet estaria coalhado de cadáveres. O tiroteio verbal envolvendo Cuba tem, porém, mais de cinquenta anos, como mostra o ocorrido no Rio com dois colegas vizinhos de quarto na Casa do Estudante do Brasil (CEB), um prédio de 12 andares na Esplanada do Castelo, detrás do Bob´s, onde morávamos.
Foi assim. Num plácido domingo de 1966, o alagoano Valério – o Chulé e o paraibano Cid – o Pirata decidiram espairecer. Saíram pau-de-araramente pela av. Presidente Wilson rumo à Cinelândia, sem um puto no bolso. Duas quadras depois, no Consulado Americano, um cartaz anunciava sessão especial de um filme com entrada grátis. Sem opção de lazer, entraram. Era propaganda contra Fidel, o “ditador sanguinário”. Na sala, entre os ilustres convidados, o agropecuarista Heli Ribeiro, candidato a vice-governador do Rio pela ARENA, o partido da ditadura.
Lá pelas tantas, a tela exibe um mercenário preso no ataque de Playa Girón encostado num paredón prestes a ser fuzilado.(Corte). Um pelotão de atiradores aguarda as ordens de um barbudo sósia de Jack Palance em “Os Brutos também amam”. (Corte). Imagens de Fidel e Che que fumavam charuto e riam, gozando da desgraça alheia (Corte). Na hora agá, a mãe do detento interrompe e pede clemência, provocando suspiros nos espectadores: “ais, uis, nãão, que horror!”. O barbudo, olhando para a câmara, pergunta a alguém fora do campo visual:
– Fuzilo agora ou não fuzilo?
Foi aí que Chulé e Pirata não se contiveram. Sem combinar, gritaram juntos a plenos pulmões:
– Fuzila! Fuziiiiiiiiila!
Barbas de molho
Protesto geral na sala. Acenderam as luzes. Heli Ribeiro ordena a prisão dos dois estudantes que fogem em desabalada carreira perseguidos por seguranças parrudos. Naquela noite, eles me contaram a história aqui narrada conscientes de que estavam no lugar errado. Se fosse no Cine Paissandu, seriam aplaudidos. Eis o que eu queria dizer. Quando brasileiros discutem apaixonadamente Cuba, estão pensando no Brasil e em muito mais: no destino que cada um aspira para a espécie humana. Além disso, os comentários sobre Cuba revelam o que cada um é.
Valério e Cid eram pacíficos. Queriam fuzilar a miséria, o analfabetismo, as doenças, a fome, a mortalidade infantil, a injustiça social, a concentração de riquezas, o latifúndio, a corrupção, o tráfico de drogas, a prostituição, enfim tudo aquilo representado por Fulgêncio Batista aliado ao complexo industrial-militar dos Estados Unidos. Já os brasileiros que se horrorizavam com o paredón em Cuba eram os que silenciavam sobre os crimes da ditadura militar no Brasil: censura, tortura, prisões arbitrárias, desaparecidos políticos. Era a luta coxinhas x petralhas avant la lettre.
Foto de uma placa no aeroporto de Havana com frase de Fidel foi postada depois de sua morte por um simpatizante: “Hoje 200 milhões de crianças dormirão nas ruas, nenhuma delas é cubana”. Mencionava a presença de 3 milhões de cubanos nos funerais, muitos chorando. Alguém que não curtiu comentou: “Claro, são obrigados pela ditadura a fingir que amam Fidel, caso contrário perdem os empregos e as mamatas”. Três milhões de fingidores? Três milhões de mamatas? Pelas barbas de Fidel! Trata-se de agressão à nossa inteligência.
Várias postagens no Facebook reduziram as relações sociais a uma operação aritmética, garantindo que Pinochet matou só 3.000 opositores, enquanto Fidel fuzilou 25.000. Como regra geral, tais comentários são feitos por quem não leu porra nenhuma sobre a história de Cuba, mas se deixou contaminar pela mídia, que não consegue nomear Fidel sem pespegar-lhe um “ditador”.
Uma desses focos de infecção é o artigo “Fidel Castro, senhor de escravos” (Folha de SP 02/12), escrito pelo jornalista Leandro Narloch, que manipula números duvidosos sem indicar as fontes e jura que Fidel, um psicopata, enganou milhares de intelectuais no mundo inteiro. Intelectuais, como se sabe, se deixam enganar facilmente. Não é o caso do tal Leandro.
Foi o caso de Cortázar, Neruda, Thiago de Mello e muitos escritores como Gabriel Garcia Márquez, prêmio Nobel da Literatura, convidado por Fidel a criar uma escola de cinema e televisão em Cuba para estudantes do terceiro mundo, que teve como professores Robert Redford, Francis Coppola, Costa Gravas e outros “enganados” que homenagearam Fidel, enquanto Pinochet não conseguiu “enganar” um só intelectual e talvez por isso ninguém lhe dedicou um poema, uma canção, um filme.
Fio da barba
Outro intelectual “enganado” foi o cineasta norte-americano Saul Landau, diretor de “Fidel”, que tive a oportunidade de ver no Chile, em 1970. Com uma câmera de 16mm, o gringo acompanhou o líder cubano em uma viagem de jipe pela ilha, em 1966. Documentou a relação de Fidel com a população do campo e da cidade, registrou os avanços da reforma agrária mais radical do continente, mas também as reclamações dos descontentes. Quase todo mundo “fingia” amar o “psicopata” e “senhor de escravos”.
Durante a exibição deste documentário nos Estados Unidos foram registrados muitos incidentes. Uma bomba atirada numa sala de projeção em New York não feriu ninguém, mas outros atentados e sabotagens ocorreram, incluindo o incêndio do Haymarket Theatre em Los Angeles, em 1970, na véspera da estreia, o que acabou levando à suspensão da programação em outras cidades. A polícia, eficaz para matar um negro de vez em quando, não identificou nenhum dos autores. Os americanos não puderam ver o filme, a não ser em sessões fechadas na Universidade de Berkeley.
Mas em Cuba, também, embora toda a população estivesse alfabetizada, não era possível ler alguns livros como “Literatura e Revolução” de Leon Trotsky. No verão de 1972, com uma bolsa de uma instituição francesa, passei 42 dias na ilha. Numa noite em um bar de Santiago de Cuba, depois de vários “mojitos” de rum branco, dois poetas locais se queixaram que o único exemplar havia sido retirado da biblioteca. Depois fui interrogado por agentes da Seguridad del Estado que queriam saber o teor de nossas conversas. Como a delação não era premiada, me calei.
Sem abdicar do senso crítico, é possível defender as conquistas da revolução cubana. Segundo a ONU, que ao contrário dos intelectuais “não se deixa enganar”, Cuba tem 0.3% de analfabetismo e um Índice de Desenvolvimento Humano de 0,769, acima do Brasil. Dados da UNICEF indicam que “Cuba é o único pais da América sem desnutrição infantil”. Cuba incomoda porque – como escreveu Márcio Souza – é uma prova atrevida de que é possível organizar a sociedade de outra forma.
Que no dia do enterro de suas cinzas, Fidel receba as merecidas homenagens daqueles que não abdicam da utopia, “la carne, sangre y piel del hombre redimido”, como canta Mercedes Sosa. Hasta la victoria final. Hasta siempre, Comandante!