Tenho nove irmãs. A ofensa a elas me levou a reler o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, que redigiu uma espécie de manual no qual expõe e analisa as fake news da época e desconstrói as estratégias desleais e até criminosas usadas em bate-bocas, “para que assim, nos debates reais, possamos reconhecê-las e aniquilá-las”. Após sua morte, em 1860, o manuscrito inédito foi encontrado em uma gaveta por seu discípulo Julius Frauenstäd, que o publicou quatro anos depois, em Leipzig, sob o título de “Erística”, que é, segundo Schopenhauer, “a arte de discutir, não para buscar a verdade, mas para vencer o debate por meios lícitos ou ilícitos”.
Publicado no Brasil com introdução, notas e comentários de Olavo de Carvalho, o livro recebeu aqui o título revelador de “Como vencer um Debate sem precisar ter razão em 38 estratégias”. Mas enquanto Schopenhauer escreve para desmascarar e combater a patifaria intelectual, Olavo de Carvalho, fingindo perseguir o mesmo objetivo, dá receitas seguidas por Jair Bolsonaro e seus rebentos, que foram alfabetizados por Abraham Weintraub.
Os múltiplos episódios testemunhados por todo o Brasil mostram que a cartilha vem sendo cumprida à risca, o último deles com a infâmia contra a jornalista Patrícia Campos Mello da Folha SP.
– “Ela [Patrícia] queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim” – disse Bolsonaro nesta terça (18), com risadinha repugnante, provocando gargalhadas indecorosas dos puxa-sacos no entorno. Reforçou depoimento de Hans River, ex-funcionário da Yacows, que caluniou a jornalista na CPI das Fake News do Congresso Nacional e foi desmentido pelo registro das mensagens trocadas entre ambos, o que não impediu Bolsonaro de reproduzir a canalhice, seguindo a receita de seu guru Olavo de Carvalho:
… “O sujeitinho que, nada tendo a objetar seriamente às razões do adversário, procura apenas desmoralizá-lo ou confundir a plateia para fazer com que o verdadeiro pareça falso e o falso verdadeiro”.
Lado podre
Foi o que aconteceu também com a “mamadeira de piroca” durante a campanha eleitoral, quando foram feitas ofensas às mulheres, aos gays, aos índios, aos quilombolas. Embora reconheça que Schopenhauer destina o “tratado de patifaria intelectual não para o uso dos patifes e sim de suas possíveis vítimas”, Olavo de Carvalho na realidade armou os patifes com munição considerada “inofensiva” por seus eleitores.
A atriz Regina Duarte, agora indicada para a Secretaria de Cultura, perdoou o capitão por suas declarações preconceituosas, racistas e homofóbicas durante a campanha, jurando que, ao conhecê-lo pessoalmente, descobriu “um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora […] Votar nele é como assinar um cheque branco de esperança”. Não sabemos o que diria ela, se o mencionado furo fosse, da boca pra dentro, endereçado à “namoradinha do Brasil”.
Tal atitude condescendente alimentou o lado podre do país que se revelou nas ofensas à Patrícia Mello. O filho Eduardo Bolsonaro, o Zero Dois, desembestou a difamação nas redes sociais com a postagem “A Arrependida de Taubaté”. O apresentador da Band, vereador Joaquim Campos (Podemos-PA), pago com dinheiro do contribuinte, usou a tribuna para chamar a jornalista de “vagabunda” durante sessão na quarta (19). Nunca a política brasileira chegou a um grau de degradação tão baixo e vil.
Notas de protesto pipocaram, felizmente, por todos os lados em defesa da democracia e da liberdade de imprensa, assinadas por instituições representativas do outro Brasil: OAB, ABI, sindicatos, igreja, parlamentares, magistrados, universidades, partidos políticos, incluindo o PSL pelo qual Bolsonaro foi eleito. Ele “vilipendiou a dignidade, a honra e o decoro que a lei exige do exercício da Presidência” – denunciou a Folha de SP.
O que se reconhece como “decoro” é o comportamento discursivo no espaço público que, no mundo democrático e “civilizado”, exige posturas e modos de respeito protocolares na interação com outrem, inclusive e em especial, com a oposição. É diferente do espaço privado, que é doméstico, que tem outras normas de postura. Um presidente representa não apenas seus eleitores, mas todo o país, não pode ficar vomitando obscenidades, degradando a vida política. Por isso, a reação às ofensas é absolutamente necessária, mas é preciso ir mais longe ainda e não entrar no jogo de quem quer mudar de assunto, como indicam os artifícios apresentados no tratado.
Ofensas pessoais
Várias das 38 estratégias comentadas por Olavo de Carvalho foram usadas por Bolsonaro. Destacamos algumas delas, entre as quais a de nº18: “o uso intencional da mutatio controversiae”:
– Se notamos que o adversário faz uso de uma argumentação com a qual ameaça nos abater, não devemos consentir que prossiga neste rumo e chegue até o fim, mas devemos interromper o debate a tempo, sair dele ou desviá-lo e levá-lo para outra questão. Em suma, trazer à baila uma mutatio controversiae.
Foi o que Bolsonaro fez, seguindo a cartilha do seu guru. A jornalista Patrícia Mello comprovou disparos criminosos de mensagens em massa na campanha eleitoral? Incapaz de contestá-la, o presidente a agride de forma chula e obscena e desvia o debate sobre o crime das fake news. Existem provas do envolvimento de Flávio Bolsonaro e de seu pai com o miliciano Adriano da Nóbrega assassinado na Bahia? O presidente responsabiliza o governador, que é do PT, levando a discussão para outro rumo.
Não argumenta, não apresenta fatos, ideias, razões lógicas, provas, que comprovem a validade do que diz. Usa a estratégia nº 38 de forma combinada com outras:
– Quando percebemos que o adversário é superior e que acabará por nos tirar a razão, então nos tornamos pessoalmente ofensivos, insultuosos, grosseiros. O uso das ofensas consiste em sair do objeto da discussão (já que a partida está perdida) e atacar a pessoa do contendor. […] Quando fazemos isso, o tema da discussão é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira. É um apelo à animalidade”.
Esses procedimentos reforçam a estratégia nº 29, intitulada Desvio: “Se percebemos que vamos ser derrotados, recorremos a um desvio, isto é, começamos de repente a falar de algo totalmente diferente, como se fosse pertinente à questão e constituísse um argumento contra o adversário. […]. Isso se faz de modo bastante insolente, quando vai simplesmente contra o adversário e nada fala do tema”.
A estratégia nº 28 – “Argumento ad auditores” mostra a relação de quem fala com quem ouve, quando se trata de um auditório inculto. Recomenda-se aí o uso de “uma objeção inválida, mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar. E ainda que o adversário seja um conhecedor do assunto, não o são os ouvintes”. É para esse auditório boçal que Bolsonaro fala: “As pessoas são inclinadas ao riso fácil e os que riem estão do lado daquele que fala”, especialmente se a ofensa aparecer “sob um aspecto ridículo”.
Os ouvintes
Bolsonaro, é verdade, nos mata de vergonha, desmerece o cargo de Presidente da República. “O que temos visto e ouvido quase cotidianamente – diz a nota da ABI – não se trata de uma questão política ou ideológica. Cada dia mais fica patente que o presidente precisa, urgentemente, de buscar um tratamento terapêutico”. A forma de reagir às suas baixarias, além das notas, é retornar ao tema de interesse público que ele quer desviar.
Agradeço se você leu até aqui. Quem mantém coluna semanal como essa no Diário do Amazonas, sabe que não é recomendável, em pleno carnaval, distrair com outros temas foliões inebriados com a festa dionisíaca, ainda mais quando quase tudo já foi dito sobre a agressão chula e obscena do presidente da República contra a jornalista Patrícia Campos Mello.
Não podia deixar, no entanto, de abordar o assunto, em nome de minhas nove irmãs, todas vivas, a quem aqui nomino: Glória, Regina, Helena, Ângela, Stella, Aparecida, Celeste, Elisa, Céu. A agressão fere minha mãe, minha filha, minhas três netas, minhas sobrinhas, minhas alunas, minhas amigas, as mulheres brasileiras e os homens de bem. Embora não conheça pessoalmente a Patrícia, considero-a já minha décima irmã, irmã de todos nós, que com ela fomos insultados e envergonhados. Queremos preservá-la do esgoto. Que Patrícia se sinta abençoada e apoiada por aqueles que acreditam que outro Brasil é possível.
P.S. – Schopenhauer, Arthur. “Como vencer um debate sem precisar ter razão. Em 38 estratagemas”. Introdução, notas e comentários de Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro. Topbooks. 1997.
Obs. – Uma curiosidade: descobri dentro do exemplar, a nota fiscal da livraria que me vendeu o livro por R$ 25,00. em 1997. Não está discriminado, mas imagino que Schopenhauer vale 24,99. O resto é o que vale Olavo de Carvalho: um tostão furado. O que sobra disso é o que valem os agressores de Patrícia.