Por Ribamar Bessa:
Uma frase – uma simples frase – me fez viajar a Montpellier, no Sul da França, para participar com 15 mil pessoas da manifestação realizada neste sábado (24) em defesa da língua occitana. Os manifestantes exigiam que a Carta Europeia de Línguas Regionais e Minoritárias, assinada pelo Estado francês em 1999, fosse finalmente ratificada pelo Senado depois de um bloqueio de dezesseis anos. Mas os senadores foram contra e, na terça-feira (27), rejeitaram por 180 votos a 155 o projeto de lei constitucional, prejudicando assim as línguas minorizadas e seus falantes.
O francês é o único idioma oficial, mas convive na França – um país plurilíngue – com línguas regionais como o occitano, o catalão, o alsaciano, o bretão, o basco, o corso, num total de 75 línguas, incluindo as faladas em território francês do Caribe e das ilhas do Pacífico, segundo relatório feito em 1999 por Bernard Cerquiglini para o Ministério da Educação.
No entanto, os senadores, em sua maioria de direita, acham – como se vivessem no século XVIII – que essas línguas regionais colocam em risco a unidade nacional, embora ninguém questione a existência do francês, apenas se reivindica o direito ao bilinguismo e à convivência de línguas. Dizer que as línguas regionais ameaçam a língua francesa é piada jacobina, que não resiste à menor análise.
Aldeia Occitana
Manifestações em defesa da diversidade linguística ocorreram em várias cidades, a maior delas foi essa de Montpellier, cujas ruas estavam enfeitadas com grandes bandeiras vermelhas. Lá, no local da concentração na Esplanada Charles-De-Gaulle, funcionou uma “aldeia occitana” com culinária regional, artesanato, livros em língua occitana, grupos musicais, trovadores, poesia, teatro e circo, enfim, uma senhora festa colorida com gaita de fole, flauta, clarinete, tambor e sanfona. Foi aí que eu vi como a língua d´Oc explode de vida, apesar do desrespeito e do desconhecimento de senadores e não apenas aqueles de direita.
Grandes bonecos similares aos de Olinda representavam figuras como Jean Jaurés (1859-1914), professor e político socialista adepto da não violência que defendeu as línguas regionais e Frédéric Mistral (1830-1914), escritor que ganhou o Prêmio Nobel da Literatura em 1904 com sua obra escrita em occitano. Ambos estavam presentes nos diversos stands que traziam informações sobre programas alternativos de rádios associativas e sobre as escolas.
O tom foi dado por um caixão funerário vermelho, em cuja tampa estava registrado o número atual de escolas públicas bilíngues em relação ao número de estudantes:
“País Basco – 1 escola / 4.000 estudantes;
Córsega – 1 / 8.000 estudantes;
Países D´Oc – 1 / 220.000″.
No final, vinha a pergunta escrita em occitano: “Povo Armado, povo respeitado?”. É que bascos e corsos, ao contrário dos occitanos, resistiram com armas na mão, protestando contra a discriminação, que incluía até bem pouco tempo punição severa para quem falava a língua regional na escola. Essa questão foi bem discutida em 2006 no Colóquio A Escola Francesa e as Línguas Regionais realizado em Montpellier, cujas intervenções foram publicadas em livro.
Na luta contra a discriminação, o movimento em defesa da diversidade linguística começou a criar, por iniciativa própria, escolas bilíngues por todo o país, denominadas de Diwan em bretão, Ikastola em basco, La Bressole em catalão. Na Occitânia, batizada com o nome de um pássaro “Calandreta” (a nossa cotovia), surgiu, em 1979, a primeira escola bilíngue franco-occitana, gratuita e laica. Hoje existem 60 calandretas com 3.471 alunos, o que representa apenas 0.6% de crianças da região com acesso ao ensino bilíngue.
Por isso, uma das principais reivindicações da passeata que contou com crianças, adolescentes e idosos vestidos com camisetas que exibiam frases em occitano, é a de que o Estado francês assuma suas obrigações no ensino bilíngue, seguindo o modelo das calandretas, cujo método de imersão linguística precoce recorre às técnicas do pedagogo Freinet, conhecido no Brasil, que aposta na autonomia e na formação cidadã das crianças. A presença delas tinha uma extraordinária força simbólica, como se estivessem ali para afiançar o futuro da língua d´oc com todos os seus saberes.
Manifestantes portavam faixas e cartazes escritos em occitano mostrando a importância das línguas de identidade. “A língua é a chave do futuro” – dizia um deles. Outro, escrito numa chave de papelão que uma moça trazia na costa, clamava: “Quem tem a chave da língua tem sua liberdade“. Ou ainda: “Quem perde sua cultura, perde sua alma”. Não faltou o humor, no cartaz que propunha: “Usa tua língua” com a imagem de um casal se beijando apaixonadamente.
Chave do futuro
Dois jornais de Montpellier – o semanário La Gazette e o diário Midi Libre – abriram espaço para cobrir a manifestação organizada pelo Instituto de Estudos Occitanos (IEO) e pela Confederação das Calandretas, cujo presidente Jean-Louis Blenet em entrevista reclamou políticas linguísticas para a escola, a mídia, a sinalização das ruas e do metro e em todos os espaços sociais. Vários estudiosos também se pronunciaram.
– Os nomes das plantas estão em língua occitana, assim como os de todos os legumes “selvagens” e de termos usados no cultivo da azeitona e da uva. Os viticultores nomeiam certas variedades e processos agrícolas na língua d´oc, que muitas vezes não tem equivalentes em francês – declarou Josiane Ubaud, etnobotânica, que pesquisou os saberes tradicionais e percebeu a grande utilidade da língua occitana na agricultura familiar.
Quem reforçou a ligação língua-terra foi um engenheiro em informática entrevistado na passeata, que comparou a busca pelo occitano e pela glotodiversidade com a luta ambientalista pela biodiversidade e de retorno à natureza, pois ambos os movimentos representam uma volta às fontes e às raízes que garantem o futuro.
A toponímia também está repleta do léxico da língua d´Oc, como salientou a professora, Maria-Jeanne Verny para quem o domínio do occitano, que ela ensina na Universidade Paul-Valéry “permite conhecer melhor o ambiente no qual vivemos, basta ler os nomes das ruas de Montpellier“. Já Sandrine Artero, professora da Calandetra Dau Clapas, considera que “o occitano é uma chave para a abertura ao mundo, permitindo que as crianças conheçam e respeitem mais as outras línguas e culturas”.
Como não valorizar um idioma que faz circular tantos saberes, tanta poesia, tanta música e que já deu ao mundo um prêmio Nobel da Literatura – Frédéric Mistral – que escreveu e publicou em 1859 o longo poema Mirèio numa língua que foi minorizada? A história do amor impossível de Vicente e Mireille que morre nos seus braços se tornou conhecida no mundo inteiro, com tradução do occitano para muitas línguas.
Foi para me envolver nesse movimento que aceitei convite do meu amigo Mathias Gibert. Ele traduziu para a língua d´oc o artigo Na França tem índios?Os occitanos (Diário do Amazonas 07/06/2015). Na ocasião, um leitor occitano agradeceu e postou uma frase – uma simples frase, que não é uma frase simples: “Este artigo tão interessante me fez sentir um pouco menos só”. Aparentava surpresa com o interesse de um jornal da Amazônia por sua língua. De repente, a passeata “me fa sentir un pauc mens sol” e quem se sentiu menos só fui eu.
De qualquer forma, ao lado da Ana Pereira, somei meu grito aos dos manifestantes:
– Anem Oc, Per la Lenga D´Oc! (Avancemos pela língua occitana!)
P.S 1. Ver Lieutard, Hervé et Verny, Marie-Jeanne (orgs) L´École Française et les langues régionales XIX e XX siècles. Montpellier, Presses Universitaires de La Méditerranée. 2007 (acompanhado de dvd com o filme de Michel Lafon sobre o tema)
P.S. 2 – Fotos de Maria Freire.