O povo indígena Hupda do Alto Rio Negro (AM) foi surpreendido com rótulos de cerveja vendida no mercado, que contém palavras de sua língua traduzidas de forma imprecisa e condenável. A empresa Cervejas e Chopes Rio Negro, de Manaus, além de não consultá-los, aceitou nominá-los como Maku, termo depreciativo que em Arawak significa “selvagem, sem língua”, apesar da notória riqueza de seu acervo fonético e tonal. É que o Hup-de Nehérn (“língua de gente) – é assim que eles denominam sua língua – pertence à família linguística Nadahup, sem parentesco com as outras famílias, como o basco em relação às línguas neolatinas.
Esta não é a primeira vez que uma empresa humilha os índios e se aproveita deles. A Indústria de Papel Sovel da Amazônia Ltda escolheu para rótulo de embalagem do papel higiênico o nome Ticuna, um povo que vive no Peru e na Colômbia e que no Brasil soma mais de 40 mil pessoas em 100 aldeias do Alto Solimões. Deu o maior rolo (perdão pelo trocadilho), com repercussão nas aldeias, no movimento indígena, na Assembleia Legislativa e no Judiciário. A empresa não usou o papel que fabrica para limpar a merda que fez, alegando que queria homenagear os índios. Pimenta no pescoço francês dos outros é refresco. Por que não homenagearam a própria mãe deles?
Pode isso, Arnaldo? Não. Não pode. Até mesmo Donald Trump – quem diria? – rejeitou esse tipo de homenagem. quando o advogado Antonio Battaglia, mexicano, aproveitando o vacilo das Organizações Trump no México, registrou, em agosto de 2015, o sugestivo nome Trump Paper – Suavidad sin fronteras para o papel higiênico, com 30% do lucro destinado aos compatriotas deportados. O rótulo traz o mascote, uma caricatura de um rolo com o conhecido topete de Trump.
Aí, um neozelandês criou uma vassourinha para limpar vasos sanitários com a caricatura do presidente que está à venda na plataforma Etsy. Faltava só o vaso sanitário personalizado. Disso se encarregou a empresa chinesa Shenzen Trump Industrial Company, que passou a fabricar privadas, latrinas e cloacas sob a marca “Trump”. Os advogados do presidente americano recorreram à Justiça chinesa. Ganharam. O cagatório mudou de nome.
O procurador
E no Brasil, quais foram as decisões do Poder Judiciário para resguardar os direitos linguísticos dos índios neste que é o Ano Internacional das Línguas Indígenas decretado pela ONU? Juízes e procuradores não recebem nos cursos de Direito informações mínimas sobre os povos indígenas, que acabam sendo prejudicados nos processos judiciais pela carga de preconceitos dominantes na sociedade que se apoderam da alma dos magistrados. Mas aqui isso não ocorreu.
No caso dos Hupda, também grafado como Hupd’ah, o procurador Fernando Merloto Soave do Ministério Público Federal, em portaria publicada no último dia 24, deu prazo de três semanas à empresa para informar, nos moldes da Convenção 169 da OIT, se possui autorização do povo Hupda para uso das palavras na sua língua, que podem ser encontradas no dicionário e guia de conversação organizado pelo linguista Henri Ramirez e o antropólogo Renato Athias.
A Cervejaria Rio Negro, antes de ter sido notificada formalmente pelo MPF, adiantou em nota que “o projeto, ao contrário do que mencionam, sempre teve a intenção de promover, divulgar e levar nossa cultura que é tão escassa (sic) para todos os lugares do mundo. Nosso projeto é autoral, inspirado na cultura tribal”, seja lá o que “tribo” signifique.
O procurador Fernando Merloto, bem assessorado, invocou a Constituição Federal que garante “a proteção do patrimônio cultural brasileiro, nele incluídos os bens de natureza material e imaterial”, imprescindíveis para a identidade, a memória e a ação dos diferentes grupos formadores da nacionalidade brasileira, especialmente seus modos de criar, fazer e viver. Citou o artigo da lei maior que determina ser “competência da União proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Foi isso que ele fez.
Para tanto, o MPF solicitou relatório técnico do antropólogo Bruno Marques que conviveu com os Hupda em suas pesquisas de mestrado e doutorado. Estabeleceram de comum acordo o prazo de 90 dias para sugerir medidas de compensação às 35 aldeias, com cerca de 3.000 pessoas entre os falantes das seis línguas Nadahup, alguns dos quais migraram recentemente para o centro urbano de São Gabriel da Cachoeira. A empresa vai ter que vender muita cerveja para pagar o dano cometido.
A juíza
Destino similar teve o outro caso ocorrido em 1997, quando a empresa Sovel produziu papel higiênico com os rótulos “Ticuna” e “Tupé”. Na ocasião, houve protesto na Assembleia Legislativa do Amazonas por parte de alguns deputados que exigiram a retirada dos nomes. O diretor presidente da Sovel, Aly Yacud, respondeu que era impossível porque havia investido R$ 15 milhões para o lançamento do produto: “gastamos com máquinas, propaganda, embalagem”. Informou que a produção mensal era de 30 mil fardos com 16 unidades cada e que os nomes já haviam sido gravados pelos consumidores.
O MPF entrou, então, com Ação Declaratória de Nulidade contra a Indústria Sovel, requerendo ressarcimento de danos materiais e morais. O processo, felizmente, caiu nas mãos da juíza federal da 1ª. Vara/AM, Jaiza Maria Pinto Fraxe, que já atuou corretamente em outros processos e que domina o tema. Doutora em biotecnologia, ela defendeu na Universidade Federal do Amazonas a tese “Do Geodireito ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético: caminhos e instrumentos de gestão do conhecimento biotecnológico na Amazônia”.
É justamente disso que se trata, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que considera “secundária” a polêmica em torno apenas do papel higiênico, se não vier acompanhada da grande questão que é a apropriação comercial do conhecimento indígena através da biopirataria e de temas como a propriedade intelectual, a biodiversidade e a demarcação de terras. “A apropriação indébita não depende do tipo de produto” – disse Francisco Loebens, na época vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). De qualquer forma, se a empresa não se retratasse, teria de “descomer” muito para limpar o que fez.
A juíza Jaiza Fraxe julgou a ação em novembro de 2004 e deu um prazo de 30 dias para a empresa retirar o nome Ticuna, justificando que nem a etnia, nem a Funai e nem o INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial – haviam sido consultados. Ela levou em conta a reclamação dos Ticuna que, através do coordenador da Escola Indígena de Amaturá, Damião Carvalho Neto, considera que “se a intenção era nos homenagear, deviam ter nos consultado”. Para ele, o nome de seu povo em papel higiênico é “uma forma de humilhar os Ticuna”. O nome foi, enfim, retirado. Os amazonenses vão ter de se limpar com outras marcas.
É possível encontrar muita gente que não teria problemas em usar Trump Paper ou outra marca de papel higiênico com o nome de alguma autoridade brasileira irmanada no golden shower. Afinal, eles merecem a homenagem pelo que representam intelectual, moral e politicamente. Mas com os índios, é sacanagem. Em ambos os casos, se trata de um gesto político. Um contra os poderosos. Outro contra os deserdados. Escolha o seu lado.
Obs: Leituras complementares
1) Pozzobon, Jorge. Vocês brancos não têm alma. Rio. Azougue Editoral. 2013
2) Athias, Renato: Doenças e cura: sistema médico e representação entre os Hupda-Maku da região do Rio Negro (AM). Porto Alegre. Horizontes Antropológicos. UFRGS, v.4, n.9. 1998
3) Marques, Bruno R. Figuras do Movimento: Os Hupda na literatura etnológica do Alto Rio Negro. Rio. PPGAS-Museu Nacional UFRJ. Dissertação de Mestrado. 2009.
4) Marques, Bruno R. Os Hupd’äh e seus mundos possíveis: transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro.Rio. PPGAS-Museu Nacional UFRJ. Tese de doutorado. 2015. Orientador: Eduardo Viveiros de Castro.
5) Ramirez, Henri. A língua dos Hupd'”ah do Alto Rio Negro: dicionário e guia de conversação. São Paulo. Associação Saúde Sem Limites. 2006.