– Alô! Professor Bessa?
– Sim.
– Aqui é o Nilomar… Não sei se você ainda se lembra de mim…
Ninguém lembra nem do próprio nome, quando acordado abruptamente por um telefonema inesperado às 9h30 da madrugada, como aconteceu naquele domingo, num final de inverno de 1996. Cliquei rapidamente: “Localizar arquivo”. Procurei “Nilomar Doc” na minha memória. Ai veio de bubuia a minha infância e os aniversários na casa da vovó Marelisa, Rua Monsenhor Coutinho, 380, em Manaus. Do outro lado, bem em frente, morava um Nilomar que paquerava uma de minhas primas, a Vânia ou a Ceíta, estava perdidamente apaixonado por uma delas.
– Claro que lembro. Comi muito os brigadeiros da senhora sua mãe.
Efetivamente, o único Nilomar que conheço é o filho da competente e virtuosa funcionária aposentada da Secretaria de Interior e Justiça do Estado do Amazonas, Benedita Lopes de Souza, um doce de pessoa, não sei se continuou fazendo os mesmos brigadeiros saborosos que costumava oferecer nos aniversários familiares. No entanto, a voz do outro lado do telefone desconfirmou:
– Ninguém jamais comeu da minha mãe os brigadeiros. Deve haver um engano.
– Não é o Nilomar de Manaus?
– Não. Não. Sou o Nildomar, com “d”. “D” de “dever”, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), amigo da Maria Eulália. Estou ligando aqui da Rodoviária Novo Rio.
Cliquei outra vez “Localizar Arquivos”: não havia qualquer Nildomar. Cliquei “UFJF”: só estava registrado a participação que tive em evento, em 1992, comemorando os 500 anos da viagem do Colombo, no qual palestrei sobre “A tradição oral nas crônicas”. Nada de Nildomar, nem de Eulália. Minha memória podia estar me traindo. Por isso, não perdi o rebolado:
– O que você manda, Nildomar?
Maria Eulália
Ele estava desesperado. Com voz aflita, quase chorosa, explicou-me que tinha ido ao casamento de um sobrinho em Florianópolis. Voltava de carro com a mulher e a filha de dois anos. De madrugada, ao atravessar a fronteira de São Paulo com o Rio de Janeiro, logo depois de Queluz, viu que o tanque de gasolina estava quase zerado. Quando chegou ao posto para abastecer, descobriu que havia perdido – ou lhe haviam furtado – documentos, cheques, cartões, dinheiro, identidade, tudo. Lembrou-se de mim, a única pessoa que conhecia no Rio:
– Deixei mulher e filha no carro, estacionado no posto. Peguei carona num ônibus. Viajei mais de duas horas até a Rodoviária. Uma funcionária, com pena, me permitiu que usasse o telefone. Pensei em chamar a Maria Eulália – lembra da nossa amiga Maria Eulália? – lá em Juiz de Fora, para pegar com ela o seu endereço. Antes, arrisquei e disquei para a UERJ, aqui no Rio. Uma funcionária, de nome Ivanita, me deu suas coordenadas. Estou precisando que me empreste 200 reais para sair desse sufoco.
Perplexo, eu não sabia quem era a tal Maria Eulália.A única que vi no Google era ironicamente a candidata do PSL, Maria Eulália do Emprestimo, lá de Miranda (MS). Expliquei que estava acamado, com febre, mas que se ele pudesse chegar até aqui em casa, em Niterói, podíamos resolver o problema. Veio. De carona. Simpático. Cara de honesto. Abraçou-me com um quê de sinceridade. Fez carinho no “Canalha”, meu cachorro. Juro que nunca o vi mais gordo. Mas sei lá! Nesses congressos acadêmicos e sindicais, numa noite de porre, trocamos endereços, tecemos amizades que depois caem no olvido.
Solidário, adiantei 100 paus, dizendo que era tudo o que tinha em casa. Ele agradeceu e pediu o número da minha conta no banco, garantiu que me enviaria o dinheiro assim que chegasse em Juiz de Fora. Para me tranquilizar, rabiscou o seu endereço: Rua Halfeld, 283. E o número de seu telefone.
– Quando for a Juiz de Fora, faço questão de hospedá-lo na minha casa. A Shirley, minha mulher, faz um feijão tropeiro com torresmo e uma canjiquinha com carne de porco. Imbatíveis.
Ao se despedir, ainda perguntou se eu queria mandar alguma coisa para Maria Eulália.
Nessas circunstâncias, o que mandar para um fantasma? Gaguejei:
– Um abraço. Diz que não esqueço dela.
– Ela vai ficar muito feliz quando souber que estive com você.
Bom bife
Nildomar não se manifestou nunca. Telefonei várias vezes. Chama, chama, ninguém atende. Pedi a uma irmã que reside em Juiz de Fora, ela conferiu o endereço. Lá funciona o Açougue Bom Bife e ninguém sabe quem é Nildomar no jogo do bicho. Ele esfarelou-se no ar, misteriosamente. Depois, alguém me contou ter sido vítima de golpe semelhante. Um golpezinho, mas golpe. Nada comparável com o estelionato eleitoral do qual somos vítimas. Fiquei com cara de égua, me sentindo como se fosse um eleitor honesto de Jair Bolsonaro.
Existe isso? Sim, no meio dos 57 milhões de votos em Bolsonaro, como em qualquer outro candidato, tem machistas truculentos, mal intencionados, homofóbicos, racistas, milicianos, golpistas, toupeiras, corruptos, fascistas, preconceituosos, ingênuos, desinformados, mas existe muita gente inteligente e honesta que acreditou no discurso da luta contra a corrupção, hiper badalado pela mídia, mesmo depois de Collor de Mello enganar a maioria do Brasil com o “conto do caçador de marajás”.
Na falta de um programa de governo, com o apoio da mídia e de igrejas evangélicas que não pagam impostos e com o uso esperto das redes sociais, convenceu-se eleitores que acreditaram na bandeira da moralidade. No entanto, pouco a pouco, os fatos estão mostrando que essas pessoas foram vítimas de outro estelionato eleitoral, que a luta não era contra a corrupção como sistema, mas contra os adversários políticos perseguidos com um discurso moralista para afastá-los do caminho ao poder. Ao contrário, a nação acompanha hoje, estarrecida, o desmonte dos órgãos no combate à corrupção e a desmoralização do ministro da Justiça, o lavajatista Sérgio Moro.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) revela o enriquecimento do senador Flávio Bolsonaro, proprietário de 37 imóveis registrados nos cartórios do Rio? O pai intervém no Coaf. A Polícia Federal quer levar adiante o caso de Fabrício Queiroz e as maracutaias no Porto de Itaguaí? Ele neutraliza a PF. O Ministério Público do Rio de Janeiro investiga o vereador Carlos Bolsonaro sobre a prática da “rachadinha”? Ele nomeia Procurador Geral da República alguém que reza por sua cartilha e que sequer constava na lista tríplice eleita pela categoria.
Aos eleitores, para disfarçar, só resta mandar um abraço para Maria Eulália, desistir do feijão tropeiro da Shirley, comprar, se puder, linguiça e bacon no Açougue Bom Bife para preparar um tutu à mineira e se perguntar: Será a Benedita?