A soltura de Lula, nas condições conhecidas, deve ser considerada como um ponto de luz numa grande batalha que ainda está longe de sugerir seu apogeu, e cujos desdobramentos pertencem às artes das pitonisas. Não é um ponto de chegada, mas certamente assinala um salto de qualidade no processo político como oportunidade nova que se oferece à reorganização popular, que agora tem um líder em condições de exercer papel estratégico e unificador.
Estamos entrando em um novo ciclo histórico que, como processo, tende a desdobrar-se em outros ciclos por um número de anos que não podemos precisar, mas que decerto se prolongará para além do horizonte dos atuais atores políticos. Seja o que for que nos esteja sendo reservado pela História, o fato objetivo é que esse futuro, a recuperação de um Brasil senhor de seu destino, começa a ser construído e será o fruto de nossa intervenção de hoje no processo político.
Com a soltura de Lula, Lula inaugura-se uma nova etapa da luta política e seu delineamento ficará mais claro com o correr dos acontecimentos, e dois eventos são esperados com expectativa. Em seu discurso no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, palco de seus primeiros passos como liderança política, Lula prometeu “para os próximos dias” um pronunciamento mais refletido, pensado, no qual exporia de forma mais clara sua visão da crise e das alternativas de interesse das grandes massas. E apontaria os caminhos que pretende percorrer. O segundo fato aguardado é o Congresso do PT, na Bahia, com a presença de seu fundador. Espera-se que o partido saia unificado em torno de um programa de governo nacional-desenvolvimentista e de um plano de mobilização nacional, fazendo o encontro de sua militância com as bases populares.
Com todos os seus muitos erros que, todavia, não nos fazem esquecer seus muitos méritos e suas conquistas, o PT é um partido estratégico no quadro da democracia brasileira, seja pela sua origem – nasceu de baixo para cima, liderado por operários que conheciam o chão de fábrica e intelectuais orgânicos da classe trabalhadora –, seja pela sua capilaridade, seja pela qualidade de sua militância, seja ainda pela sua organicidade. Por todas essas razões, seu futuro diz respeito aos interesses da luta geral do povo brasileiro e é essencial para o fortalecimento do conjunto das esquerdas nativas.
Mas ele precisa entender que não está só no mundo, que sua trajetória também depende de outros partidos e atores políticos que caminham na mesma margem de rio.
Com ou sem autocritica – dê-se o nome que se achar mais conveniente à indispensável revisão histórica – as esquerdas têm a oportunidade de, fora do poder e na expectativa de uma eleição, passar em revista o Brasil de seus governos e o papel neles exercido pelos seus partidos. Essa revisão seria salutar igualmente ao mundo sindical e aos movimentos sociais, e muito contribuiria para fortalecer a ação progressista em momento importantíssimo de nossa História, levando-nos todos à retomada do trabalho juntos à massas.
O quadro político mudou, os desafios cresceram, a pasmaceira foi superada; a política foi posta em movimento e novos atores são chamados à cena. Pode ser a vez do povo, o grande ausente no concílio do poder. Mas não há hipótese de as massas retomarem o seu protagonismo se as disputas menores se sobressaírem sobre os interesses estratégicos, se o espontaneísmo superar a reflexão, ou se o voluntarismo puser de lado, mais uma vez, a prioridade que deve ser dada à organização.
Se os partidos de esquerda se dispuserem à revisão crítica de seu papel recente, sugiro que comecem por aí.
Lula, aos 74 anos, ingressa, senão no último, certamente no mais importante e decisivo ciclo de sua vida política. Cumpre-lhe unificar a luta na defesa da democracia, pois a unidade é a única alternativa de luta contra o autortarismo e a desconstituição do Estado social-desenvolvimentista, em marcha acelerada. É este o papel que, independentemente de sua escolha pessoal, lhe é imposto pela História. Mais do que reestruturar o seu Partido, ou mesmo de intentar levá-lo de volta às vitórias eleitorais a que tem todo o direito, cumpre ao ex-presidente – são as suas circunstâncias – liderar a aglutinação das forças politicas que se opõem à súcia governante e ao que representa o projeto da extrema-direita, que jamais esteve tão forte entre nós, pois o bolsonarismo conseguiu, lamentavelmente, arregimentar o apoio de ponderáveis camadas da sociedade brasileira.
O primeiro passo para a resistência ao projeto neoliberal é a unificação das forças progressistas, mas a ela não se limita pois o desafio de hoje é falar para além dos auditórios da esquerda, tocar os corações da imensa maioria de nosso povo que se sente excluída do diálogo político, que se vê esmagada pela agenda Guedes-Maia, e reclama por uma saída ao impasse que o bolsonarismo alimenta.
Cumpre a Lula defender-se diante das acusações improvadas e firmar sua inocência, denunciar o conluio que o condenou e construir, na sociedade, meios de assegurar a manutenção de sua liberdade. É de seu dever moral a defesa do PT e de seus governos. Cabe-lhe o radical enfrentamento ao bolsonarismo. Mas Lula não pode renunciar ao papel maior que é o de líder de todas as correntes populares do país. É com essa perspectiva que devemos aguardar seu próximo pronunciamento, desta feita programático, anunciando a alternativa popular ao neoliberalismo e ao autoritarismo que o viabiliza.
Para enfrentar os desafios, a unificação das forças de esquerda é essencial, mas não suficiente. A História reclama por uma Frente Ampla, como aquela que apressou o fim da ditadura e implodiu o Colégio Eleitoral montado pelos militares para eleger Paulo Maluf. A nova Frente, esta que a realidade exige, ampla e democrática, concertada em torno de um Projeto Nacional, deve estar aberta a todos os que se disponham a lutar contra o governo que aí está e o que ele representa como regressão política. Ela compreende, talvez até com atores diferenciados, os que estão contra o autoritarismo e defendem a democracia e a Constituição, os que se opõem à derrogação dos direitos econômicos e sociais, e os que cerram fileiras em defesa da soberania nacional e do desenvolvimento, sem o qual não haverá combate à concentração de renda e ao desemprego que avilta a dignidade humana. É a política de alianças entre atores diversos unificados pela consciência/identificação do inimigo comum.
Lembremos o óbvio: não se faz aliança entre iguais.
Trata-se, portanto, de uma Frente que olha para além das limitações eleitorais. Liderá-la é o desafio que se oferece ao ex-presidente, quando promete, num reencontro com seu povo, voltar a percorrer o país e trazer as grandes massas de regresso às ruas, retomando seu papel de sujeito histórico. A proposta da Frente e seu Programa, discutidos amplamente por todos os setores sociais, poderá ser o grande fator de unificação política em torno de questões centrais da vida nacional, como nosso próprio projeto de país, sociedade e nação. O espectro dessa Frente, portanto, há de ser o mais largo possível, unificando ações e programas, e exercendo essencial e inadiável papel pedagógico de educação politica e mobilização das grandes massas, em momento de crise dos movimentos sociais e sindicais e de avanço da pregação neofascista, pelos instrumentos clássicos dos meios de comunicação de massas, mas igualmente pelas redes sociais e, principalmente nas periferias, junto aos mais carentes, por intermédio da ação do primitivismo religioso levado a cabo por seitas neopentecostais que ocupam os espaços deixados vazios pelas comunidades eclesiais de base e pela crise organizacional dos partidos populares.
As próximas eleições municipais, apesar de paroquiais, podem oferecer espaço para ensaios de unidade e para um amplo debate sobre a Frente Ampla e seu projeto de país.
Lula livre incomoda o statu quo, e por isso tem inimigos em todas as franjas do poder, da Avenida Paulista aos palácios de Brasília, onde já se engendram manobras visando à restauração do cumprimento da pena de prisão após o julgamento em segunda instância. A grande imprensa faz seu serviço desde a primeira hora. Até onde e até quando Lula desfrutará de liberdade, é uma incógnita com a qual nos desafia o processo histórico, e só poderá ser respondida pela mobilização popular.
Daqui pra lá – Os generais do alto comando do exército boliviano passaram pelas escolas militares brasileiras de graduação e aperfeiçoamento, como Academia Militar das Agulhas Negras, Escola de Oficiais (EsAO), e Escola de Comando e Estado Maior (ECEME). E há os que passaram pelo Centro de Instrução de Guerra na Selva (Cigs) e os que estagiaram na ESG. Seus instrutores brasieiros passaram pelas escolas militares dos EUA.
A invasão da embaixada da Venezuela– Na madrugada da última quarta-feira, um grupo de baderneiros invadiu a representação diplomática da República Bolivariana da Venezuela, com o fito de expulsar os que ali vivem e trabalham. Liderava a gangue um certo Tomás Silva Guzmán, indicado pelo deputado Juan Guaidó, que dia desses afirmou ser presidente da Venezuela, para comandar a representação diplomática, junto à “embaixadora” María Teresa Belandria. O efetivo encarregado de negócios da Venezuela no Brasil, Freddy Menegotti, recorreu à solidariedade dos partidos e movimentos de esquerda brasileiros – e a obteve. Em pouco tempo adentrava a Embaixada, iniciando a resistência, o deputado federal Paulo Pimenta, do PT, a quem logo se somariam Glauber Braga e Sâmia Bonfim do PSOL. Do lado de fora, militantes desses partidos e também de PCB, PCO, MST e MTST, entre outros, resistiram por horas sob o sol abrasivo da capital, prestando solidariedade ao povo venezuelano e afugentando dali os provocadores que acorriam para apoiar a aventura. O episódio terminou, ao fim do dia, com a fuga negociada dos bandoleiros pela porta dos fundos. Ficam registrados o ensaio de ação conjunta das forças de esquerda contra os ataques da extrema-direita, e as dúvidas, por esclarecer, sobre a participação do governo brasileiro no episódio.
Roberto Amaral
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia