Por Ribamar Bessa:
O estrondo da pororoca é sempre espantoso, mas nós não arregamos. Éramos apenas três amazonenses para enfrentá-la na mesa redonda “Os desafios da Amazônia no século XXI”: o poeta Aldísio Filgueiras, a ex-reitora da Universidade Estadual do Amazonas, Marilene Corrêa e o tio do “Pão Molhado”, que vem a ser este que digita aqui essas mal traçadas linhas. Foi no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, quarta-feira, 7 de setembro, em pleno feriado, com público seleto que foi ouvir os palestrantes “présentes” no debate mediado pela jornalista Ana Lúcia Pardo.
O tio do “Pão Molhado”, que é monotemático, definiu a Amazônia como o conjunto de línguas ali faladas, uma vez que historicamente língua e território, sempre de mãos dadas, são um binômio inseparável. Todo o território pan-amazônico cabe dentro das línguas que classificam, nomeiam, descrevem, avaliam, hierarquizam e dão sentido a tudo que lá existe: flora, fauna, rios, seres encantados, gente, narrativas, canções. Concluiu que o maior desafio da Amazônia é interromper o glotocídio de cinco séculos e manter seu atual patrimônio linguístico formado por mais de cem línguas indígenas e por várias línguas faladas em português. A Amazônia está enraizada nessas línguas que lhe deram sentido.
Raízes da Amazônia
O palestrante contou como iniciou seu interesse pelo tema, em 1966, quando saiu de Manaus para cursar jornalismo no Rio. Na primeira aula provocou estrondosa gargalhada da turma ao responder à chamada do professor. Intrigado, indagou o motivo do riso e uma colega esclareceu: “A forma certa de falar é “prêsente”, com o “e” fechado”. Quem fala “présente”, com o “e” aberto, é pau-de-arara”. Foi aí que o tio do Pão Molhado descobriu que trazia tatuado o mapa do Amazonas em seu sotaque e que qualquer pessoa ao abrir a boca exibe, além dos dentes, o fígado, as tripas, seus segredos íntimos, os recantos de sua alma, sua identidade.
Esta identidade regional começou a ser discutida em dois livros fundamentais mencionados que representam para a compreensão da Amazônia aquilo que “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque e “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Jr., significam para o país. O primeiro deles é O Complexo da Amazonia (1976) de Djalma Batista, que rompeu com a visão galvãobuenamente xenófoba de que a Amazônia é nossa e ninguém tasca e chamou a atenção para a pan-amazônia, território compartilhado por nove estados nacionais, laboratório histórico para comparar o processo colonial, na medida em que foi colonizado por portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses e franceses.
O outro livro A Expressão Amazonense: do Colonialismo ao Neocolonialismo” (1977), de Márcio Souza, deu visibilidade às culturas indígenas criminosamente apagadas pela historiografia dominante. Para Márcio, A Amazônia é “um purgatório onde culturas inteiras se esfacelam no silêncio e no esquecimento A Amazônia só estará livre quando reconhecermos definitivamente que essa natureza é a nossa cultura, onde uma árvore derrubada é como uma palavra suprimida e um rio poluído é como uma página censurada”.
Guardiões do atraso
O outro palestrante, Aldísio Filgueiras, que iniciou a apresentação, nos faz pensar que o olhar do poeta é sempre necessário para iluminar a realidade. Ele seduziu a plateia com discurso irônico e bem humorado:
– “O maior desafio da Amazônia no século XXI é o Brasil” – disse em tom provocativo, argumentando que “o Brasil não se tem como um projeto nacional. Se existe um Projeto Brasil, ele está sendo ditado há muito tempo pelo Fundo Monetário Internacional e outros bancos que já submeteram à sua política perversa de austeridade a Grécia, a Espanha, a França, a Itália e Portugal”.
O poeta, que é membro da Academia Amazonense de Letras, considera que “Manaus ou Belém, como todas as capitais amazônicas, é a mais perfeita tradução do que hoje se reconhece como desastre ecológico ou ambiental. Não fora algumas sobrevivências dessa Amazônia que desaparece tanto do imaginário quanto aparece na realidade (o açaí, o tacacá, o tucupi, o tucunaré, a tapioca, etc), a cara de Manaus, que já se achou europeia, pode muito bem ser confundida com um acampamento de refugiados africanos”.
Ele criticou o recente show “Amazonas Live” montado sobre palco flutuante em um braço do rio Negro, com Plácido Domingo e Ivete Sangalo, “que parecia mais uma líder de torcida do que uma cantora”. O espetáculo visava criar condições para o plantio de três milhões de árvores no Xingu, “como se a solução fosse plantar e não parar de cortar”. Mas como parar de cortar – pergunta o poeta – “se o governo petista tinha Kátia Abreu, a musa do agronegócio no Ministério da Agricultura, e o governo golpista substituiu-a pelo campeão de desmatamento Blairo Maggi? Os dois não podem ver um pau em pé, uma árvore, sem pensar em madeira”.
– A Amazônia é um arquipélago em que as ilhas não se comunicam, porque estão sob o poder dos guardiões do atraso – ele diz, acrescentando mais adiante que “A Amazônia, reflexo errado da realidade, foi criada por um erro de cálculo e sabemos que erro de cálculo derruba viadutos, passarelas à beira-mar e outros acidentes inflacionados pela propina”.
Ato Criador
A terceira palestrante Marilene Corrêa usou seus conhecimentos de pesquisadora reconhecida e sua experiência como reitora e como secretária de ciência e tecnologia para apresentar uma visão global sobre o desenvolvimento da Amazônia e suas metamorfoses, a partir de uma perspectiva histórica e social, envolvendo a questão indígena e os projetos sobre a região. Mencionou uma série de pesquisas essenciais para conhecer a Amazônia profunda, ainda desconhecida dos brasileiros, sobre os biomas, os ecossistemas, a cosmovisão, os saberes ancestrais, a diversidade de línguas, ritos e manifestações culturais dos povos da floresta.
O debate sobre a Amazônia abriu a 10ª edição do Ciclo Ato Criador – Outros Possíveis, com uma extensa programação que inclui encontros, palestras, debates, oficinas, performances, saraus poéticos, instalações, intervenções e mostra artística que acontecerão de setembro a dezembro, com a parceria do Consulado da França, da Oi Futuro, da Petrobrás e de outras instituições. No mês de setembro, as atividades estão integradas ao Festival Nacional de Cultura Popular – Interculturalidades, realizado pelo Centro de Artes da UFF e o Ministério da Cultura.
O evento que foi aberto pelo Diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social e Superintendente de Artes da UFF, Leonardo Guelman, contou com uma apresentação musical de flauta de Michael Oliveira, nascido em Manaus, mas residente no Rio, que narrou sua trajetória em busca da identidade indígena.
P.S. – Nesta quinta-feira (8), aos 87 anos, morreu a professora Martha Aguiar Falcão, mestra querida, professora da Universidade Federal do Amazonas, pós-graduada em botânica, com vários trabalhos publicados imprescindíveis para a compreensão da Amazônia. Deixa-nos saudosos. (A PASTORAL DA FRUTA http://www.taquiprati.com.br/cronica/604-a-pastoral-da-fruta
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