Quinta-feira à noite, sala de embarque, no Aeroporto de Quito, Equador. Aguardo o voo para o Rio. Enquanto leio no diário argentino La Nación a notícia da demissão do ministro do Turismo, Pedro Novais, ouço pelo serviço de alto-falante um anúncio da companhia aérea TACA:
– Atención, señor Rosé Messa, por favor, diríjase a la puerta de embarque 22.
Eu, nem te ligo! Continuo a leitura. A notícia dizia que o ministro Pedro Novais, 81 anos, quando deputado, usou dinheiro público para pagar despesas de motel, salários da governanta e do chofer particular de sua mulher, além de estar envolvido com desvio de verbas do Turismo. Enfim, o cara está mergulhado até o tucupi em corrupção das grossas. O alto-falante continuava insistindo. No final da leitura, ouço pela quarta vez:
– Señor Rosé Messa, urgente, diríjase a la puerta de embarque 22.
Foi aí que a ficha caiu. Desconfiei que Rosé Messa podia ser José Bessa. Fui conferir. Era.
A funcionária da TACA checou meu passaporte e os tíquetes das duas malas e me convidou gentilmente a acompanhá-la. Gentilmente? Fui conduzido até uma porta blindada, de uso privativo, ela usou seu cartão magnético, digitou uma senha, a porta se abriu. Entramos por um longo corredor, descemos escadas e demos muitas voltas até chegarmos ao terminal de carga, onde havia um intenso movimento, com pessoal especializado manejando equipamentos no meio das bagagens. Eu nem suspeitava da existência dessa espécie de hangar.
De repente, me vi rodeado por vários policiais, com cães treinados, um deles parecia ser um Springer Spaniel, adestrado no combate ao narcotráfico. Dizem que esse animal possui cinco milhões de células olfativas e é capaz de farejar qualquer tipo de droga: maconha, cocaína e seus derivados, material explosivo e até ministros corruptos indicados por Sarney.
O cão não saía de perto de uma de minhas malas. O policial verificou meu passaporte, conferiu o tíquete e perguntou se aquela mala era minha. Confirmei. Perguntou o que continha. “Livros” – eu respondi. Ele, então, decidiu verificar, e me pediu para abrir o cadeado, o que foi feito.
O zeloso policial tirou um por um cada um dos 53 livros, folheando-os com curiosidade. Os temas de que tratavam eram os mais diversos, todos vinculados à temática indígena: educação bilíngue, ecoturismo, etnobotânica, etnomedicina, uso de plantas medicinais, parteiras indígenas, guia etnográfico da região amazônica, canções indígenas e livros de etnomusicologia, mitos, contos e narrativas, bem como dicionários e gramáticas de diversas línguas.
A mala, agora vazia, foi submetida outra vez ao faro do Springer Spaniel, que se desinteressou dela, virando a cabeça para o outro lado onde estavam os livros empilhados. O policial voltou a colocá-los dentro da mala, um por um, folheando-os como quem embaralha cartas de um baralho. Depois de revisar a segunda mala, onde estavam roupas, procedeu a um interrogatório. Com respeito, mas com certa impaciência, me bombardeou de perguntas.
Qual era minha profissão, o que eu tinha vindo fazer em Quito, se era a primeira vez que visitava o país, se pretendia retornar, por que levava tantos livros? Respondi que era professor universitário, mostrei o convite da Pontifícia Universidade Católica do Equador que me enviou as passagens para participar de um Congresso sobre as Línguas em Perigo, esclareci que voltaria se me convidassem outra vez.
Quanto aos livros, o policial perguntou ingenuamente se eu ia lê-los todos. Disse-lhe que provavelmente não. Então, por que eu os levava? Comparei com a arma que ele portava: era para usar, somente quando eu precisasse, se precisasse. Expliquei que aqueles livros podiam ajudar o meu trabalho, que eles haviam sido trocados por exemplares do livro que escrevi, e exibi, orgulhoso, um exemplar da segunda edição do “Rio Babel, a história das línguas na Amazônia”.
Perguntei se ele falava quéchua. Não, apenas entendia, seus pais é que falavam. Aproveitei para discorrer sobre a situação das línguas indígenas no continente americano e, quando me vi, já estava dando uma aula de sociolinguística. O policial me liberou, correndinho, para não ser obrigado a assistir a aula. Mas antes de me retirar, vi a insistência do Springer Spaniel que continuava invocado, farejando minha mala, justamente no lado onde eu havia depositado um exemplar do livro de minha autoria.
Será que o cão sentiu o cheiro do León, meu gato, que costuma deitar-se em minhas malas às vésperas da viagem, só para demarcar território? Ou esse Springer Spaniel é um crítico literário e está achando meu livro uma droga? Eu, hein?
PS – Urgente – POVO KAIXANA CERCADO. Acabo de receber, neste sábado, a seguinte nota assinada por Aucá Pellin, que me foi enviada pelo tukano Manuel Moura, residente no Alto Solimões. Dados concretos colhidos durante a madrugada de hoje: o prefeito Antunes Vitar Ruas mandou os vereadores incitar o sindicato dos trabalhadores rurais e estão invadindo a Área indígena Kaixana Vila Presidente Vargas, Município de Santo Antônio do Içá.
Neste lugar existe um sítio arqueológico Kaixana e, no Governo do Eduardo Braga, este mesmo prefeito passou uma estrada ao lado deste sítio arqueológico, e as máquinas arrastaram cerâmicas e ossos que permitiram o roubo de peças milenares.
O cacique Kaixana Francisco Barroso Larranhaga está resistindo bravamente ao ataque que começou ontem, mas está ficando encurralado. Quem está comandando a invasão são Jocinei Sabino Malheiros e Paulo Garcia do Sindicato Rural, com o apoio dos Fazendeiros Biá e Iraci Pedrosa.
O motivo das invasões é impedir a demarcação das áreas indígenas. Quando Eledilson denunciou o ano passado a invasão, foi preso, torturado, teve sua casa invadida e foi ameaçado de morte. Firmino Fecio Filho da Ouvidoria Nacional da Defesa dos Direitos Humanos em Brasília acolheu e deu andamento ao processo em Outubro de 2010. Estou acompanhando pelo telefone e dá para ver que a tensão é enorme e a qualquer momento pode haver sérias consequências porque os invasores estão armados.