“Here comes the sun / And I say / It’s all right
Little darling / The smiles returning to the faces”.
Ninguém suspeitava que um gato no Amazonas poderia um dia levar os Beatles a restituir o sorriso a Niterói. Tudo começou em 1965 quando Manaus, então porto de lenha, queria ser Liverpool e sonhava com meninas sardentas de olhos azuis desfilando na rampa do Teatro Amazonas. Foi lá, na banca de jornal da praça São Sebastião, hoje elevada bestamente à categoria de “largo”, que um menino de 11 anos viu o retrato dos Beatles na capa colorida da revista Fatos e Fotos.
– Kinto Beatle! – ele exclamou.
Geraldo Bessa, o menino, havia acabado de batizar seu gato mimado, um felino tigrado, alaranjado e branco, que fazia a alegria dos moradores do bairro de São Jorge, onde morava.
Num dia chuvoso, seu vizinho da mesma idade e com o mesmo nome – Geraldo Sá Peixoto, hoje renomado doutor em História – avaliou que o Kinto Beatle estava muito tristinho, ronronando queixoso aqui e ali no fundo do quintal. Os dois Geraldos confabularam, fizeram uma “junta médica” e decidiram injetar alegria no felino através de uma “experiência científica”. Botaram gasolina no tubo de uma seringa de injeção e aplicaram-lhe uma dose de alta octanagem.
A gasolina era das boas. O Kinto Beatle, muito doidão, saiu em louca disparada pelas ruas do Conjunto dos Comerciários. Se estivesse no GP do Mônaco ultrapassaria Ayrton Senna. Embora a primeira reação tenha sido de desconforto, parece que ele gostou do barato, porque com certa frequência vinha espontaneamente pedir aos seus “enfermeiros” para “encher o tanque”. Viciou. Cercado de carinho, morreu de velho e não de overdose, mas de qualquer forma, você que me lê, não tente fazer o teste, pode ser fatal.
E o que Niterói tem a ver com essa história? Tudo.
Os Power
Acontece que Djewry Power – nome artístico adotado por um dos Geraldos – se mudou com viola e cuia para Niterói. Diplomou-se engenheiro e casou com Taninha para quem compôs Casinha – uma romântica canção de amor com um final inesperado. Confiou os três filhos – Rodrigo, Daniel e Júnior – a Orfeu, que lhes fez descobrir os Beatles, a quem passaram a amar e cultuar através da banda Calangles que há cinco anos, sempre na última semana de agosto, participa da International Beatleweek em Liverpool, berço de tudo, tocando no Cavern Club com 70 bandas do mundo inteiro.
Foi aí, depois da peregrinação realizada à meca dos beatlemaníacos, que o casal Rodrigo Bessa e Jessica Abreu, criadores da Calangles, se deram conta de que a população de Niterói, conhecida como cidade-sorriso, anda muito tristinha, como aliás a de todo o Brasil, mergulhada em tenebrosa escuridão. Diante de tão pouca luz, decidiram acender o farol e dar uma injeção de Beatles na cidade. Encorajados pela memória do Djewry Power, que nos disse adeus antes do combinado, organizaram a 1ª Niterói Beatleweek.
Uma turma presepeira da Prefeitura de Niterói jurou que apoiaria o show, mas depois bateu fofo e mijou fora do penico, justamente quando as bandas convidadas já haviam confirmado presença e que Liverpool havia dado seu aval endossado por Julia Baird, irmã do John Lennon, amiga – assim oh (esfrega os dois dedos indicadores) – de Jessica Abreu, professora de inglês em Niterói. No entanto, quem é destemido pode desTemer, ousando.
– Vamos fazer a festa assim mesmo – anunciou o audaz Rod Power. Buscou patrocínio do Polo Gastronômico de São Francisco. A banda Bezzouros pagou a confecção das camisas e as demais bandas se ofereceram para tocar de graça. A notícia bombou nas redes sociais. Diante da repercussão, dois dias antes, a Prefeitura de Niterói aderiu, cedeu equipamentos de som, palco, iluminação e apoio logístico da equipe do réveillon. Pronto: Here comes the sun. Os Beatles, enfim, chegaram.
Yeah Yeah
Cerca de 15 bandas se revezaram em dois palcos sábado (2) e domingo (3) na orla de São Francisco, tendo ao fundo a baía de Guanabara escandalosamente deslumbrante. Tocaram grupos que já se apresentaram em Liverpool, alguns do Rio, um de Florianópolis, além de alguns feras que fizeram a alegria de um entusiasmado público.
Velhos nostálgicos, coroas de meia idade, jovens e crianças, muitas crianças, participaram cantando, dançando, ouvindo as músicas dos Beatles, como se todos compartilhassem lembranças de um passado edênico. O ato de rememorá-los parecia, com todo respeito, a celebração da missa. “Fazei isso em memória de mim”.
Quem estava sendo evocado ali não eram apenas os rapazes de Liverpool, capazes de arrancar lirismo dos pequenos gestos cotidianos, mas todo um modo de vida, que ao reivindicar paz e amor, unia gerações apostando na utopia de um mundo solidário, generoso. As músicas dos Beatles tocadas em Niterói funcionaram como antídoto contra a gang fedorenta e sebosa no poder: temer, padilha, moreira et caterva, para não falar no repelente trump.
A qualidade dos músicos, o repertório, o equipamento de som, a facilidade de locomoção entre um palco e outro, um tempo mínimo de espera para cada banda se apresentar, a proximidade do público com os artistas em palcos de fácil acesso, além da comida barata e de banheiros limpos que não se encontram no Rock in Rio – tudo isso permitiu avaliar o evento com nota 10. Por isso, o prefeito Rodrigo Neves já determinou sua inclusão no calendário oficial de Niterói, que atraiu gente até da cidade do Rio.
Lullaby
Lá do Rio veio minha neta Ana, 7 anos, trazendo sua amiga Laila, da mesma idade. Foi ela que me levou para curtirmos, juntos, a música dos Beatles, o que fortaleceu nossa cumplicidade. Sentamos na ponta do palco, em lugar cedido generosamente para um velho e duas crianças, na maior intimidade com os músicos.
– Vovô, será que eles vão cantar “Here comes the sun”?
Cantaram. Ela, que surpreendentemente sabia a letra, os acompanhou, com uma pronúncia melhor do que a minha e a do Joel Santana. As duas pediram “Help” e “Yellow Submarine”. Não conheciam, porém, “Golden Slumbers”. Quando souberam que lullaby era canção de ninar, Laila, que levou sua boneca, começou a acalentá-la no seu colo:
Sleep pretty darling, do not cry
And I will sing a lullaby.
Tentei fotografar e filmar a cena cativante, cheia de ternura, mas o celular, egocêntrico, só tirava fotos de mim mesmo. Apertei sem sucesso todos os botões para reverter, mas quando minha neta me ensinou como usar aquela geringonça, Jessica Power já estava cantando outra música, aplaudida por Taninha que, no meio da multidão, parecia mãe de miss de tão eufórica. No final, Ana fez o que eu queria, mas não tive coragem: pediu um autógrafo do Rod Power. O Kinto Beatle e o irreverente Djewry, lá onde estão, devem estar exultando.
P.S. 1 “Um dia um gato” é um filme tcheco da década de 1960 que me fez lembrar o Kinto Beatle. O gato usa óculos e pode enxergar as pessoas de acordo com o caráter de cada uma. Só ele vê. O corrupto tem cor cinzenta, o falso é amarelo, o hipócrita é roxo, o criativo apaixonado é vermelho. Rod Power é vermelho e não usa espelho pra se pentear.
P.S. 2 – No mês passado, Rod Power lançou o CD “O Catador de Poemas”, com letras que ele musicou de José Cyrino, um puta poeta amazonense. Vale a pena curtir esse som.
P.S. 3 – Quem tocou na Niterói Beatle week: Calangles e Bezzouros (Niterói), Bluebeatles e Gui Lopes (Rio), Sonido Club de Florianópolis (SC) e outros como Camacho Trio, Sonzera Clube, Teachers on the Rocks, Dr. Ones, Casal Beatles e Evandro Halabey, além de um show de feras: Carlos Malta, Fernando Moura, Tim Reynolds, Glauco Velloso, Daniel Almeida e Dany Power.