“Algo deve mudar para que tudo continue como está”
(Tomasi di Lampedusa – O Leopardo)
Quando Aristóteles “abotoou o paletó”, digo, a túnica, lá em Atenas, não podia imaginar que sua Arte Poética ajudaria a entender, dois milênios depois, o debate entre os presidenciáveis, num país então inexistente chamado Brasil. Ali, naquele circo mambembe da TV Band, na noite da quinta-feira (9), atores quase sempre canastrões encenaram vários gêneros dramáticos classificados pelo filósofo grego como farsa, fábula, tragédia, comédia, tragicomédia. Personagens, maquiados e mascarados, alucinados e delirantes, representavam para uma plateia diversificada, misturando dados do ‘real’ com ficção.
Mais do que a mistureba de gêneros, narrativas híbridas e cenas de indigência intelectual explícita, aqui interessam os atores. Alguns, dignos da literatura, outros frutos de telenovelas repletas de intrigas, golpes baixos, oportunismos. Quatro invocaram o nome de Deus em vão como estratégia de marketing, um dos quais nos remete à cena em que D. Quixote de La Mancha desafia um leão faminto. O domador abre a jaula, o leão boceja, se espreguiça, lava a cara com a língua, dá as costas e volta a dormir, esnobando nosso herói, cuja apressada conclusão é a de que o rei da selva se acovardara.
Os patriotários
Muito distante da grandeza de Quixote, que pelo menos nos deixou de herança a utopia e o direito de sonhar pela igualdade e a justiça, o fanático Cabo Daciolo (Patriota, vixe vixe), o anti-Quixote, “servo do Deus vivo, cristão, bombeiro militar”, investiu contra o leão imaginário da URSAL – uma tal de União das Repúblicas Socialistas da América Latina, que ele acabara de inventar. “O comunismo não vai ter vez em nosso governo” – avisa, ressuscitando um fantasma que, embora adormecido, depois de meio século de lavagem cerebral continua atemorizando o imaginário popular. Ele pergunta a Ciro Gomes (PDT):
– O senhor, que fundou o Foro de São Paulo, o que tem a dizer sobre a Ursal?
– A democracia é uma delícia, mas tem seus custos – ironizou Ciro, que nem sabia que diabo de sigla era aquela. O Foro de São Paulo, que desde 1990 reúne representantes de partidos políticos de esquerda, defende a integração regional da América Latina, a paz, a autodeterminação dos povos e repudia a intervenção dos Estados Unidos em assuntos internos de nossos países. Promovido a “comunista”, Ciro estaria inoculado pelo vírus vermelho, segundo o bombeiro, que tenta apagar um fogo já controlado pela senadora Kátia Motosserra Abreu, ex-ministra de Dilma e anticomunista de carteirinha.
O Cabo Daciolo, em discurso dirigido aos “patriotários”, jura que “o problema do Brasil é falta de amor” e que ele vai pegar os corruptos “para honra e glória do Senhor Jesus”. Ataca a urna eletrônica, com a inverdade de que o Brasil é o único país do mundo a utilizá-la. Sobre o desemprego – seja objetivo pede o mediador Ricardo Boechat – o Cabo comenta apenas que vai capacitar a mão de obra. Não diz como.
Seu cupincha, o capitão paraquedista reformado Jair Bolsonaro (PSL, vixe vixe), vai mais longe. Adverte o assalariado para já ir se acostumando, porque ele reduzirá direitos trabalhistas. Justifica sua estratégia: “Quanto menos direitos, mais empregos”. Interpelado sobre a desigualdade de salários entre homens e mulheres que exercem a mesma função, defende que “o Estado não deve interferir na questão salarial”. Promete que vai militarizar as escolas, armar os ‘cidadãos de bem’, efetuar a “castração química” de estupradores e prender os corruptos.
Quem é Val?
É quando Guilherme Boulos (PSOL) lhe pergunta: Quem é Val? Fiquei gelado, pensando se tratar de minha querida orientanda de doutorado. Mas o capitão responde que é “uma senhora humilde e trabalhadora, que ganha R$ 2 mil por mês”. Na realidade, diz Boulos, uma funcionária fantasma paga pelo contribuinte para cuidar dos cachorros de Bolsonaro que tem feito da política “um negócio em família” e faz parte do viciado sistema corrupto, recebendo auxílio-moradia, ele e seu filho, mesmo sendo proprietários de cinco imóveis, um deles em Brasília.
Já Álvaro Dias (Phodemos), de botox e acaju, instado a falar sobre seus planos para reduzir o desemprego, replica monotemático:
– Meu ministro da Justiça vai ser o Sérgio Moro. Abra o olho, povo brasileiro.
Seu oponente, Geraldo Alckmin (PSDB, vixe, vixe) diz que o desemprego se combate recuperando a confiança do investidor e a competitividade. Ninguém lembra mais o “Santo”, codinome com o qual aparece em várias delações premiadas, entre elas a da Odebrecht, que teria repassado a ele, através de seu cunhado, R$ 10,7 milhões em propinas, mas “cunhado não é parente, Alckmin para presidente”.
A comédia continua quando Henrique Meirelles (PMDB, vixe vixe), como quem promete dentaduras ao eleitor, jura que vai gerar rendas, mas não explicita para quem. Então, surfando na onda do candidato ausente do PT, que lidera as pesquisas de intenção de votos, defende o bolsa-família e pede que votem em “alguém que tenha mudado algo em sua vida”. Boulos aponta Meirelles como candidato dos bancos, dos banqueiros e de Michel Temer:
– Temos aqui no estúdio 50 tons de Temer. Gente que se diz contra Temer, mas aprovou emendas e medidas dele nesse mandato.
Abortando candidatos
A jornalista Lana Canepa quer saber a opinião de Boulos sobre o aborto, solicitando comentários de Marina Silva (Rede). O candidato do PSOL esclarece que ninguém é a favor do aborto. A questão é se uma mulher deve ser punida, presa ou criminalizada por abortar. Trata-se de um caso de saúde pública e não do Código Penal. Manifestou-se a favor de que as mulheres tenham o direito de decidir.
Marina Silva, em primeiro lugar, agradece a Deus, e depois escorrega, afirmando que se trata de “um tema de natureza difícil, de natureza complexa. O que queremos é planejamento familiar e educação para que a mulher não precise abortar”. A única mulher presente ao debate diz que o cenário “está bom, como está”, mas admite que, se eleita, poderá fazer um plebiscito sobre a descriminalização do aborto. Não comenta a fala de Boulos em relação ao direito de decisão das mulheres sobre o próprio corpo.
No final, Álvaro Dias resume o seu programa de governo: “Sérgio Moro será meu ministro da Justiça” e pede para a gente abrir o olho. Meirelles obedece, arregala os olhos e, como se tivesse um ovo na boca, fala qualquer coisa que, graças a Deus, ninguém entende.
O capitão Bolsonaro, que com razão escondeu seu vice, um general ausente do estúdio que acha negro malandro e índio preguiçoso, se apresenta como “a única alternativa positiva de voto este ano”. Seu cupincha, Cabo Daciolo, depois de ler um trecho da Bíblia, trombeteia como se fosse derrubar os muros de Jericó: “Quero dizer ao meu companheiro Bolsonaro que não é o único não, irmão, eu estou aqui, Cabo Daciolo, servo do Deus vivo”. Eles nem conhecem Lampedusa, mas repetem o discurso do personagem protagonizado no filme por Alain Delon:
– Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.
Sinceramente, o Brasil merecia coisa melhor. Para Aristóteles, “o homem é um animal político”, mas o adjetivo aqui foi suprimido pelo debate. O pensamento saiu derrotado dos estúdios da Band. Só nos sobrou o humor. Nas redes sociais que compartilho, uma gargalhada estrondosa ecoou para esconder nosso medo e nossa impotência, mas nenhum de nós, seus integrantes, conseguimos compartilhar o riso com os “patriotários”, que frequentam apenas as “redes antissociais” da grande mídia. Para eles, a Ursal se fez carne e agora habita entre nós. Estamos isolados.
O bloco final foi iniciado por Ciro Gomes, que prometeu outra vez retirar da lista do SPC os 63 milhões de brasileiros inadimplentes que estão na pindaíba. O segundo a se despedir foi Boulos:
“Todos os que vão falar depois de mim apoiaram o golpe. Muita gente vai dizer que o país não tem jeito, mas tem. Basta fazer política de um jeito novo”. Será?