Stendhal atravessou a praça da Bandeira Branca, dobrou à direita no Beco da Bosta, pulou uma poça de lama e, antes de entrar na casa da dona Elisa, cumprimentou a Leonor e o Agmar que, sentados na calçada, lamentavam a perseguição ao governador eleito e cassado Plínio Coelho. Seu substituto, Arthur Reis, nomeado pelo ditador Mal. Castelo Branco, teria empastelado o jornal O Trabalhista, que teve sua redação atacada a tiros.
– Epa! Pera lá! Como é que o escritor francês, morto em 1842, podia perambular pelas ruas do bairro de Aparecida, que nem existia no séc. XIX? Conta outra – diz o desocupado leitor. Pois é, mas aconteceu mesmo. Em 1965. E não era assombração, nem reencarnação kardecista. Foi assim. Antes de tudo, esclareço que Stendhal continua vivinho da silva. Não fisicamente, mas em seus livros, um deles foi que adentrou na casa da dona Elisa.
Bem que o general Justino Bastos, comandante do III Exército, tentou exterminar o escritor numa fogueira pública em Porto Alegre, queimando O vermelho e o negro, que o militar não leu, mas pelo título concluiu ser “propaganda comunista da crioulada”. O fato repercutiu dentro e fora do país. Sem querer, o general brucutu fez propaganda do exemplar devorado pelo fogo e despertou em nós a vontade de lê-lo.
Escrito em 1827, não há qualquer elogio ao comunismo em O vermelho e o negro. Uma pena. De qualquer forma, emprestado da biblioteca do doutor Djalma Batista, pai de um colega, Stendhal saiu de lá bem escondido no sovaco deste filho da dona Elisa. Por que lembrar disso agora? Em razão de dois eventos recentes, um no Brasil, que glorificou as armas, o outro na TV Francesa, que enalteceu as letras.
O tiro no livro
No nosso país, o Coiso comemorou o aumento de 168% dos clubes de tiro e das lojas de armas em seu governo, período em que foram fechadas quase 800 bibliotecas públicas. “Se o Lula ganhar a eleição, clube de tiro vai virar biblioteca pública” – ameaçou numa live a seus eleitores (al)armados. O tiro, porém, saiu pela culatra. Alguns indecisos entre 1 milhão de visitantes da 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, quando ouviram isso, declararam o voto em Lula. O general Justino fez escola.
Enquanto o Coiso sem saber incitava a cantar Lula-lá, a TV5 Monde, acessada no canal 204 da Net, exibia na última terça (19) a despedida de François Busnel, jornalista e crítico literário, que desde 2008 comandava o programa “La Grande Librairie” centrado no livro, no leitor e no debate da leitura literária. Busnel chegou a ter 946.000 telespectadores. Cada semana, em horário nobre, com duração de 90 minutos, entrevistava autores como Barack Obama, que escreveu três livros, entre eles Uma Terra Prometida.
Esse programa de TV é herdeiro de outro igualmente apaixonante – Apostrophes – dirigido por Bernard Pivot, que era seguido religiosamente por brasileiros na França: os exilados e os estudantes bolsistas. Escritores franceses e estrangeiros, consagrados ou não, falavam debatiam seus livros e no dia seguinte as livrarias eram invadidas por leitores para adquiri-los, incluindo obras clássicas de autores já falecidos, porque havia programas dedicados aos que marcaram época.
No Brasil, criado por Edney Silvestre, o Globo News Literatura também apresentava novidades literárias e entrevistava profissionais do mundo editorial, além de cobrir eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Sem a mesma audiência da TV Francesa, num país onde clube de tiros disputa espaço com a biblioteca, saiu do ar há cinco anos para ressurgir em nova temporada com os clubes de leitura. Mas quem hoje, ocupado com as redes sociais, se interessa por Stendhal?
Mania de ler
Por falar nele e voltando à vaca fria, afinal qual o enredo de O vermelho e o negro proibido pela ditadura e devorado vorazmente pelo filho da dona Elisa deitado em sua rede?
O romance conta a história de Julien Sorel, filho caçula do dono de uma serraria nos arredores de Besançon, na França. Localizada num galpão à beira do rio Doubs, a serraria tinha uma roda movida a água, que fazia a serra subir e descer, enquanto um mecanismo empurrava contra ela a tora de madeira para transformá-la em tábua. Julien, de 18 anos, que devia vigiar seu funcionamento, saiu do seu posto de trabalho para poder ler um livro escondido no alto de uma viga. Na França, só a Mme. Foucher lê na rede.
O velho Sorel, analfabeto, odiava essa mania de ler. De longe, avistou o filho e gritou várias vezes o nome do rapaz que, tão concentrado na leitura, nada escutou, sonhava com outros mundos, quando sentiu o soco violento do pai, que fez o livro voar e cair no riacho. O segundo soco no meio dos cornos ensanguentou Julien, que voltou ao seu posto de trabalho, chorando inconsolável com a perda do livro que adorava.
Quando leu O vermelho e o negro em Manaus, o filho da dona Elisa ignorava a realidade histórica, social e política da França no período da Restauração pós-napoleônica, mas como é fofoqueiro acompanhou o personagem, suas paixões, o adultério com Mme. Rênal e depois com Mathilde, filha do seu patrão, que engravidou. No final, Julien disparou um tiro na ex amante dentro da igreja durante a missa e foi condenado à morte.
No entanto, o que interessa aqui são as reflexões sobre o ato de ler, que resumem essa luta entre a serraria e o livro, ou mais precisamente entre os clubes de tiro e as bibliotecas. A Familícia dos Zeros não lê e não quer que os brasileiros tenham acesso à literatura, que humaniza e ilumina. Enquanto isenta de impostos a importação de armas, propõe aumentar os tributos sobre os livros, cuja leitura foi trocada por postagens nas redes sociais.
No inferno
Foi a vontade de reler Stendhal, que me fez dar um tempo nos grupos de WhatsApp, onde a gente consome informação diversificada e acaba se afogando em um mar picotado de textos fragmentados. Os viciados nas redes sociais, que consomem diariamente muitas horas nessa excitação febril, já não dedicam mais tempo à leitura literária, que é a forma mais sublime de leitura. A situação se agrava com a apologia às armas e a extinção de bibliotecas.
Miguel de Cervantes, no cap. 38 do Dom Quixote – romance que deu outra direção a esse gênero literário – coloca na boca do cavalheiro de La Mancha um discurso sobre as armas e as letras, aqui resumido em tradução livre:
“Benditos os séculos que não conheceram as fúrias assustadoras dessas demoníacas armas de fogo, cujo inventor deve estar no inferno como prêmio por sua diabólica invenção, capaz de permitir que um braço covarde e infame, em um segundo, mate um inocente com uma bala disparada, que corta e acaba a vida de quem merecia gozá-la”.
Parece uma crônica sobre as matanças diárias de negros e pobres nas favelas do Rio. O lugar no inferno do diabólico inventor de armas será certamente compartilhado pelos covardes facilitadores de sua importação, produção e distribuição no Brasil, responsável pela tragédia que enluta a família brasileira nesses tempos bicudos