Por Ribamar Bessa:
“Uma vida não basta ser vivida. Ela precisa ser sonhada”.
Mário Quintana
O Brasil, o Rio de Janeiro e os índios acabam de perder um sábio sonhador. No último domingo (17), o cacique Verá Mirim, de 103 anos, fechou os olhos e dormiu o seu último sono. Desta vez, sem sonhos. Durante dois dias, seu corpo foi velado na Opy – a Casa de Reza – na aldeia Sapukai, em Angra dos Reis (RJ). Vindos de muitas aldeias, inclusive de São Paulo e Espírito Santo, os Guarani se despediram na quarta-feira (20), com cantos sagrados entoados ao som de ravé (violino), mbaraká (violão), mbaraká mirim (chocalho), no ritual fúnebre do último adeus.
Conhecido pelos juruá não indígenas como João da Silva, este sonhador e tamoi mboerya nasceu na então Reserva de Serrinha, Guarita (RS), em 25 de janeiro de 1913, e aí passou a juventude. Sonhou muitas vezes com uma terra promissora. Em busca dela, mudou para a Aldeia Limeira (SC), onde residiu até 1982. Daí buscou a Ilha da Cotinga, em Paranaguá (PR), que o abrigou por mais alguns anos. Finalmente, em 1987 encontrou o que buscava em Bracuí, na Serra da Bocaina (RJ), seguindo indicações bem precisas do sonho recorrente que tinha desde jovem.
No sonho, ele via a mata, andava por ela, via rios, cachoeira, montanhas. Sonhava que nesse lugar as crianças cresceriam com saúde e alegria, pois era um lugar de kyringué nheovangáa, lugar de criança brincar, onde tinha papagaio, tamanduá, porco do mato, catitu, algumas espécies de abelhas sem ferrão, água boa, yy porã, nascente. Ele contou a seu filho Algemiro da Silva:
– Foi no sonho tantas vezes sonhado que Nhanderu Eté me mostrou Tekoa Sapukai. Quando eu estava chegando no Bracuí, na primeira vez que entrei onde hoje é a aldeia, vi que ali era o lugar do meu sonho, eu encontrei jateí. No sonho eu vi o mar e ka’aguy mirim, mas precisava provar que realmente aqui existia.
Aldeia Sapukai
Foi ali, nas alturas da serra da Bocaina, que Verá Mirim instalou sua comunidade, num bom lugar para produzir o nhandereko, lugar de viver bem física e espiritualmente e de sonhar. O caminho seguido permitiu-lhe reforçar aquilo que os Guarani sabem muito bem, que os sonhos, como parte das tradições, trazem revelações – omoexakã, guiam cada passo importante no processo de construção do Tekoa, dos lugares onde vivem, relacionando a terra, yvy, com a cosmologia,
Conheci Verá Mirim numa visita à aldeia Sapukai, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente – a Rio-92. Ele cultivava os sonhos como uma das fontes de sua sabedoria, como quem cultiva uma roça de avaxí, o milho sagrado. Era ele quem sonhava os nomes das crianças de seu Tekoa e de aldeias de outros estados. Batizava as crianças, o mel, as sementes do milho, do amendoim, a erva mate, antes de plantá-las para a colheita ser farta, assim como as plantas medicinais que conhecia como ninguém
Ele falou que os guarani sonham quando as mulheres vão ficar grávidas. Se é menina, sonham com passarinhos – parakau, apycaxu, guyrá ita pú, maritaca, maino’ῖ. No caso de menino, com porco do mato. O cacique sonhador teve nove filhos, seis homens e três mulheres: Alexandre, Aldo, Algemiro, Ernesto, Sebastião, Valdir, Genira, Marta e Nádia, que lhe deram mais de 50 netos e cerca de 100 bisnetos, entre as crianças batizadas.
– “Mas para você ser um bom sonhador, é preciso viver de acordo com teko ete’í – tem que rezar bastante, participar de todas as cerimônias de batismo, tem que ir à Opy, se dedicar o máximo possível – conta o cacique ao seu filho Algemiro, que escuta e anota para sua monografia de conclusão do curso na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Na defesa, Verá Mirim foi homenageado como uma da três fontes orais usadas na pesquisa. Foi a última vez que nos vimos.
Andanças
– Verá Mirim me ensinou quase tudo que sei. Desde a infância meu pai me transmite seus conselhos, opiniões, conhecimentos, que são muito importantes na minha vida. Através deles pude construir essa pesquisa, valorizando nhembojera reko, Mbya kuery ayvu, nossa língua, orerekó – escreveu Algemiro na monografia que destaca a importância dos sonhos no processo de construção do Tekoa, o lugar da aldeia.
O cacique era um líder importante da comunidade guarani, que sabia escutar, que falava para dentro da aldeia, mas também para fora, dialogando com as instâncias políticas e culturais da sociedade brasileira. Foi assim que ele negociou no segundo governo Leonel Brizola, no início dos anos 90, com ajuda de Darcy Ribeiro, que era senador, o decreto de homologação do Tekoa Sapukai obtido em 3 de julho de 1995. Foi assim que ele deu sempre todo apoio ao Museu do Índio, que realizou exposições com a curadoria guarani com o objetivo de combater o preconceito.
Suas andanças foram sempre guiadas através de sonhos por Nhanderu eté, que previu inclusive a viagem até a definitiva morada. Em janeiro, no último Nhemongarai – a cerimônia de batismo – ele avisou os filhos, um por um, que estava partindo, que não viveria mais. Sabia que ia morrer agora. Em conversa com a sua filha parteira, Ara, exortou-a a guardar na memória os saberes tradicionais guarani.
No caixão, ao fundo da Casa de Reza, à meia luz, um único crisântemos ao lado do rosto.Depois de passar mais de um século sonhando,o cacique João da Silva, o karai Verá Mirim, foi embora com Nhanderu como se estivesse dormindo, agora num sono sem sonhos. “Ele cumpriu sua missão” – disse Lucas Benites.
P.S. Agradeço as informações de Sandra Benites e Ana Paula da Silva que foram à Aldeia Sapukai se despedir do cacique João da Silva, bem como a interlocução com Valéria Luz da Silva e Algemiro da Silva.
Leituras complementares sobre os Guarani:
1) ALGEMIRO DA SILVA KARAI MIRIM – Três sonhadores do Tekoa Sapukai: história, oralidade, saberes. TCC do Curso de Licenciatura do Campo da UFRRJ. Rio. 2013.
2) GERALDO MOREIRA E WANDERLEI CARDOSO MOREIRA.Calendário Cosmológico: os símbolos e as constelações na visão guarani. TCC no Curso de Licenciatura Intercultural Indigena do Sul da Mata Atlântica. UFSC. Florianópolis (SC). 2015.
3) RONALDO ANTÔNIO BARBOSA.Agricultura tradicional guarani em três aldeias de Santa Catarina: M’biguaçu, Mymba Roka e Ygua Porã. TCC no Curso de Licenciatura Intercultural Indigena. UFSC. Florianopolis. 2015.
3) SANDRA BENITES. Espírito-nome, bem-estar futuro das crianças Guarani: o olhar distorcido da escola. TCC no Curso de Licenciatura Intercultural Indigena. UFSC. Florianopolis. 2015.
4) VICENTE CRETTON PEREIRA. Aqueles que não vemos: uma etnografia das relações de alteridade entre os Mbya Guarani (PPGA-UFF). 2014. Tese (Doutorado em Pós-Graduação em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense.
5) PISSOLATO, ELIZABETH. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Unesp Editora: Pronex: Nuti/ ISA, 2007.
6) LADEIRA, M. I. e MATTA, P. Ka’agüy oreramói kuéry ojou rive vaekue ỹ – As matas que foram reveladas aos nossos antigos avós. São Paulo: CTI, 2004.
7) DEISE LUCY OLIVEIRA MONTARDO. Através doMbaraka. Música, Dança e Xamanismo Guarani.São Paulo. Edusp. 2009.
8) LITAIFF, ALDO. As divinas palavras – identidade étnica dos Guarani-Mbyá. Florianópolis: UFSC, 1996.
9) MELIÁ, BARTOLOMEU.. Pasado, presente y futuro de la lengua guarani. CEADUC/ISEHF, 2010.